domingo, 23 de março de 2014

Notícias de Macau - Actualidade

“Quando consigo traduzir um poema para português, já é outro poema”

 by Ponto Final
Graça de Abreu IIAntónio Graça de Abreu diz que ao traduzir poesia chinesa é preciso contar com um factor inultrapassável: é impossível que o sentido se mantenha.
Quando viaja pela China diz que gosta de se diluir no país. Na verdade, quer tornar-se invisível. Durante todas as viagens que fez desde que cá aterrou pela primeira vez, em 1977, foi o único ocidental que alguns chineses viram na vida. Uma raridade e, em certos momentos, uma atracção. Para se proteger disso, sempre que António Graça de Abreu, 66 anos, vem à China (agora vive em Portugal) tem um hábito que agora cumpre mais por tradição do que por necessidade: não se separa da boina do tempo da Revolução Cultural que antes lhe servia de disfarce a olhares curiosos.
Apesar de ser casado com uma chinesa e de ter traduzido centenas de poemas clássicos chineses, diz que nem sempre consegue fazer-se entender. Também não se preocupa muito com isso. “Se [a pessoa] não percebe à primeira, percebe à terceira”. Diz também que não tem medo de viajar sozinho na China, nem das confusões que daí resultam. “Quando isto começa a dar para o torto quer dizer que vai ser interessante”. Essas confusões de quem já visitou todas as províncias chinesas deram-lhe material para escrever. Estão reunidas na obra “Toda a China” cujo primeiro volume foi lançado em Outubro de 2013. O segundo será em Maio de 2014. António Graça de Abreu, autor e tradutor, é um dos convidados do Festival Literário de Macau.
– Diz que sempre que começa a traduzir um poema se sente “diante de um puzzle”. Já traduziu centenas. Gosta de puzzles?
António Graça de Abreu – Gosto de puzzles...? Não. Gosto de poesia. Quando pego num poema em chinês começo por perceber os caracteres e o que querem dizer, e depois começo a desmontar e a montar outra vez. Daí a tal história do puzzle. Desmontar tudo para uma outra língua a partir dos caracteres e montar outra vez.
 – E que preocupações tem quando traduz?
A. G. A. – Por exemplo, ter em atenção o som, que é importante em chinês. Mas se é da dinastia Tang, período máximo da poesia chinesa, ninguém sabe como se falava nessa altura. Também não sabemos de que forma D. Afonso Henriques falava português. Ora, na China também acontece um bocado isso. Eles tinham os caracteres, mas como é que os liam? Não sabemos. Aquilo é complicadíssimo e o melhor é não nos preocuparmos demasiado com a impossibilidade de traduzir. Devemos traduzir o que é possível. Por isso começo por ver os caracteres, recorro a dicionários e também uso traduções inglesas e francesas. Faço isso com muita facilidade para comparar e muitas vezes para perceber como é que o poema se estrutura, se desenvolve. É desconstruir para construir outra vez e reinventar. Porque traduzir também é isso, reinventar.  O poema tem de soar muito bem em português porque caso contrário estamos a assassinar um poema que em chinês é brilhante.
– Quanto tempo é que isso demora?
A. G. A. – Anos. Demorei oito anos para traduzir Li Bai. Ando há dez anos, pelo menos, a tentar traduzir Du Fu, mas tem sido tão complicado... Também faço outras coisas pelo meio. É que o homem fazia de propósito. Associava os caracteres a coisas impossíveis, com ritmos internos, com paralelismos e palavras que caíram em desuso... Aquilo é mais do que um puzzle. Quando consigo traduzir um poema para português, aquilo já é outro poema. O chinês é monossilábico, cada caractere tem um significado único e há algumas associações internas de caracteres que podem dar outro significado. Por exemplo, Shān (山) significa montanha e Shuǐ (水) significa água, mas juntos querem dizer “paisagem” e é preciso ter cuidado com essas coisas... Às vezes também bloqueio, por isso é que tenho as traduções inglesas e francesas. Às vezes pergunto à minha mulher que é chinesa e por vezes ela também não sabe.
– Já lhe aconteceu ter bloqueado num poema e, de repente, numa circunstância completamente diferente tudo começa a fazer sentido?
A. G. A. – Isso acontece às vezes de manhã. Por acaso agora não, mas aconteceu-me com as primeiras três traduções grandes que fiz, nos anos 1990. Às vezes de manhã cedo, quando acordo lá para as sete da manhã e estou ainda meio estremunhado, lembro-me: “Ahh… É mais isto e isto”.
– Como é que começou a traduzir poemas?
A.G.A. – Como ensinava português a alunos chineses [em Pequim, em 1977] comecei a pedir-lhes para me traduzirem os poemas dos grandes poetas chineses para eu pôr em português bonito. E comecei assim. Depois nunca gostava do que fazia. Aliás, ainda tenho montanhas de folhas por todo o lado com várias hipóteses de tradução e comparo-as.
– Vi que alguns tradutores de poesia chinesa dizem que a própria construção visual do poema tem um papel importante na sua interpretação…
A. G. A. – Sim, em alguns poemas.
– Porquê?
A. G. A. – Os poetas chineses fazem isso de propósito. A língua é ideográfica e pictográfica, mas pode também não ser. Por exemplo, Shān (山, montanha) em chinês antigo era assim [e desenha o caractere], uma montanha com três picos. Portanto os poetas usam isso. Outras vezes até se pode ler as frases ao contrário. Se for da direita para a esquerda tem um significado e se for da esquerda para a direita tem outro. Ou de cima para baixo. Eles fazem uns esquemas mirabolantes. A língua chinesa é muito rica e visual...
– É quase como se fosse uma pintura com caracteres?
A. G. A. - Pois é...
– Recorda-se do primeiro livro que leu em chinês?
A.G.A. – Assim que cheguei à China em 1977 percebi que não percebia nada deste país, então comecei a ler o que havia publicado em inglês e em francês, e comecei a conhecer os poetas grandes da China, sobretudo dos anos 50 e 60... E também falei com os meus alunos sobre quem eles foram, a ver os livrinhos e a aprender chinês. Foi um trabalho gradual e progressivo. Numa viagem que fiz a uma das cidades chinesas há pouco tempo encontrei uma estátua enorme, de três metros, e à distância comecei a reconhecê-la. Era um letrado da dinastia Tang, Wang Wei, que tinha traduzido e nunca tinha visto na China. Até me vieram as lágrimas aos olhos quando cheguei lá acima. Porque são como os meus melhores amigos. Há muita coisa na China que não me interessa, mas estes poetas são universais. Têm uma linguagem e um entendimento do mundo que têm a ver com a espécie humana. E são como os meus melhores amigos. São o que gosto mais na China.
– Quando descreve as suas viagens pela China, usa a expressão diluir pelo país. O que significa?
A. G. A. – Sabe, fui para a China em 1977 e na altura os estrangeiros eram uma raridade. Ver estrangeiros a viajar pela China era raríssimo. Por exemplo, se vinha cá para baixo [parte sul da China] era o único estrangeiro numa carruagem com mil pessoas. Por isso, tinha sempre não sei quantas pessoas que vinham ver o estrangeiro porque nunca tinham visto e faziam perguntas: Quem era, quanto ganhava, o que fazia… Portanto, diluir no mundo chinês é passar o mais despercebido possível. Não ser o estranho naquele mundo e não me sentir observado como se estivesse num Jardim Zoológico. Por isso é que punha o chapéu chinês e o casaco [da altura da Revolução Cultural]. Assim eles só topavam que eu era estrangeiro a uns dez metros. Se fosse vestido assim [e aponta para as suas roupas] eles topavam logo e vinham todos ver. Por isso é que ainda hoje levo sempre o chapéu.
– Ainda é assim?
A.G.A. – Agora é menos. Já há muitos estrangeiros a viajar na China e já não estranham. Mas nos anos 1970 e 1980 era uma coisa terrível. Lembro-me que em 1980 quando a Orquestra Gulbenkian foi a Pequim, uma das violoncelistas era loira – loiríssima -, e disse-me que lhe puxaram os cabelos na rua porque eram loiros. Era para ver se eram verdadeiros ou falsos... Aliás, na altura o hotel Pequim era praticamente o único que tinha estrangeiros na China e havia sempre lá 300 ou 400 chineses à porta só para os ver.
– Disse numa entrevista que Macau tem uma visão muito “macaucêntrica” sobre a China e que o conhecimento que se tem da China não corresponde ao que é o país. Pode elaborar?
A. G. A. – Às vezes sou um pouco suspeito a falar destas coisas porque tenho uma visão “pequincêntrica” do mundo chinês porque vivi quatro anos e meio lá ou “xangaicêntrica” porque a minha mulher é de Xangai. A China tem esse problema. Como é um país muito grande, todas as pessoas vêem a China, ou o mundo chinês, de acordo com o lugar em que nasceram e cresceram. Em termos de Europa será como ter um sueco, um italiano e um romeno. Mas aqui a diferença não é tão grande porque estão unidos pelos caracteres – não pela mesma língua. Mas as pessoas são muito regionalistas. Os portugueses que vêm para Macau ficam… não é bem fechados – nunca estão fechados, porque sempre se viajou –, mas mesmo no passado as viagens que os portugueses faziam, por exemplo, nos finais do século XVI eram para o sudeste asiático. E, mais tarde, a China também se fecha. Nos anos 1960 e 1970, com a Revolução Cultural, ninguém ia à China, era raríssimo. Por isso tiram-se conclusões precipitadas. As pessoas nos séculos XVII, XVIII, por exemplo, não conheciam praticamente nada da China além de Cantão. Veja-se Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes. Eles não passaram de Cantão. E depois falam da China e dos chineses como se os conhecessem. Isso faz-me muita confusão. Mas quais chineses? De onde? Se for à Manchúria agora estão lá cinco graus abaixo de zero e aqui estão à volta de 20. As realidades são muito diferentes.
– Sente que agora há um maior interesse pela China em Portugal?
A.G.A. – É natural que qualquer português que se sinta cidadão do mundo [tenha esse interesse] porque essa cidadania passa pela China. Daí começarem a haver cursos em Portugal com alguma frequência. Mas é como a aprendizagem da língua chinesa. Começam 100 pessoas nas aulas e acabam cinco porque aquilo é muito trabalhoso. E é uma pena porque temos de ser metódicos e organizados, senão não conseguimos entrar dentro da língua ou da cultura chinesa. Mas o nível cultural do país não é muito desenvolvido. Não temos quase sinólogos em Portugal enquanto em França, Inglaterra e Alemanha existem há muito tempo... Dou-lhe um exemplo. Nós chegámos atrasados aos poetas chineses porque em Inglaterra, nos Estados Unidos e em toda a parte do mundo civilizado estas traduções dos poetas chineses existem há muitos anos. P.S.A. 








Ponto Final | Março 21, 2014 às 12:53 pm | Categorias: Uncategorized | URL: http://wp.me/pu3KH-7EQ
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