domingo, 29 de maio de 2011

"O POETA" - livro a haver - (IV)

Naquela minha cadeira
Luminosa e nevoenta,
Que um Poeta sempre tem
Ou quando não tem inventa
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
- Meu amor, que vejo eu?
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Vejo tudo o que não vejo,
Vejo tudo o que pressinto
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Noël de Arriaga

Quem gosta e tenta escrever, tem sempre um baú, em regra, não com o interesse do que deixou, por exemplo, um Fernando Pessoa, que era genial, mas com os eventuais  afectos (e simples - como é o caso) de quem ama.


Desses afectos, a partir de hoje, de vez em quando, retomo o registo parcial,  iniciado neste espaço em Outubro de 2010.

Livros são papéis... Não são, em princípio, páginas NET.


Porquê, então, agora? Perguntar-se-á. Porque há nos textos publicados inúmeros pormenores que se cruzam com o que se conhece do passado de uma aldeia aqui citada, directa ou indirectamente, diria, vezes sem conto:  Dominguizo (com Z ou com S).

 
E chegado aos cerca de 1500 posts neste blogue, é altura, digo eu, de ... de "relançar" uma transcrição já iniciada. Com uma advertência séria e definitiva: não se trata de um texto autobiográfico, mas de uma "exposição" romanceada ("vejo tudo o que pressinto") de uma vivência imaginada a partir de realidades amalgamadas num dia-a-dia em observação permanente.


São, pois, fragmentos que, somados, não mostrarão a "obra", mas tentarão valer por si - como se do retrato familiar a saudade mandasse isolar figuras e paisagens. Considerando o facto de, aqui, neste meio de comunicação,  a "palavra de ordem" ser muito em pouco.

 O pouco assegurarei. O muito estou longe de garantir, mas ... Mas continuo.


" (...) Isidro Lobo, quarenta e sete anos bem visíveis, estava como que embriagado pela tranquilidade que o circundava.  Já várias  vezes se detivera a escutar a paisagem e mais não descobrira do que, com excepção do incómodo de um ou outro carro que passava a correr na estrada, por baixo da varanda, o murmúrio da Primavera e o chilrear constante da passarada que, empoleirada nas oliveiras vizinhas, quebrava alegremente o silêncio local. 

De resto, naquela zona da aldeia, uma centena de metros afastada do povo tanto fazia ser domingo como dia de semana: o burburinho, quando o havia, manifestava-se para além da curva da estrada, junto à fonte nova, quem vai para a igreja, à beira de antigas vendas (autênticas instituições de utilidade pública), hoje feitas cafés, à moda de Lisboa, graças a farrapos e divisas. Aí se fumavam então cigarros feitos comprados avulso e se dava uma engraxadela nos sapatos de ver a Deus.

Isidro, porém, que viera da capital há pouco tempo, parecia gostar de se esquecer por ali, naquela pasmaceira, olhando, entre dois bocejos, que mais pareciam desabafos, a serra que emoldurava a tela verde seco que tinha na sua frente. De quando em vez, semicerrava os olhos e parecia querer absorver num relance tudo o que o seu olhar abrangia. De seguida, surpreendia-se de pálpebras cerradas, quais gelosias, e, então, era o regresso ao deambular pela cidade ou à sobriedade interior do sótão da casa da rua do Alecrim, à beira Tejo, ali a dois passos de gingões e prostitutas dos bares do Cais do Sodré.

Percebia-se que a imaginação o conduzia nesse instante a algum amor perdido ou às bisnagas dos óleos que tinha espalhadas pelo atelier. Ao seu moder de lábios correspondia, por certo, um apertar de tubos de verdes, castanhos, amarelos, azuis, sabe-se lá, com que alegrava as telas virgens de uma imaginação activada pelo horizonte beirão que escolhera para uma temporada de descanso, a conselho médico."

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