terça-feira, 31 de maio de 2011

"O POETA" - livro a haver (V)

"(...) Já pelo Tortosendo se respirava a ansiedade mal contida resultante de uma mecanização que despontava. Pouco a pouco, a indústria descobria-se a si própria. A electricidade dera o tiro de partida, ameaçando abafar os velhos tecelões das redondezas. Começa, então, o salve-se quem puder em toda a região.

Aguenta-se quem tem padrinhos ou, não tendo, aproveita com engenho a maré. O Dominguizo, terra de gente institivamente vocacionada para o negócio, espreita ...

Mas, na vila, o proletariado movimenta-se. Não se sabe a quem obedece, nem isso lhe parece dar cuidado. Entre o exportar raparigas para o Cais do Sodré e a luta para sobreviver localmente, tenta a segunda hipótese. Fala-se em greves e afigura-se que, na sombra, alguém pretende como que organizar o descontentamento que promete instalar-se. Face à vaga de desemprego à vista, surgem, à chucha calada, manifestações incitando à rebelião.

João Pinheiro, criado no campo, mas vivendo dos fios, sente, como os outros, que a vida começa a estremecer. Há os que se dão conta disso e o convidam para uma reunião de amigos. Resiste: perecebe-lhes o alcance e evita encontros que possam roubar a tranquilidade. Mais a mais, tem mulher e filha ... Ainda se fosse sozinho ... Mas a situação degrada-se na vila e a electricidade recém-chegada ameaça deixá-lo sem pão.


Um dia, ao fim da tarde, quando quase todos os da terra se tinham recolhido do frio, que começava a apertar, passaram-lhe uns papéis que convidavam à resistência. Mal chegou a casa pediu à filha que lhos lesse: "Beatriz, o que é diz aqui?..." A garota soletrou os manifestos como pôde. Depois João pegou neles de novo e rasgou-os em mil bocadinhos.

"Já leste Lenine", perguntaram-lhe baixinho no dia seguinte. "Não sei ler", aproveitou, adivinhando do que se tratava. "É necessário unir os trabalhadores da nossa indústria principal", acrescentaram-lhe, sem mais pormenores.

Na semana seguinte foi à reunião. Não sabia muito bem o que aquilo era, mas foi. Encontraram-se fora da vila, a pretexto de uma pastucada. Falaram-lhe da urgência em se nomear um comité de greve a constituir com base num outro comité local, já a trabalhar à socapa. Percebeu que a coisa era grave e
comprometedora, mas aceitou continuar. "Do campo nunca levei nada, dos fios muito menos ... E agora o desemprego ... Depois, Beatriz, a minha menina ... ", pensou. Ganhara forças. Agora não faltava às patuscadas, "em local diferente para não dar nas visitas", diziam-lhe os controladores da região. De resto, havia-se habituado a tomar todas as cautelas recomendadas, para evitar surpresas. De cada vez que se encontravam, os primeiros a avançar, se não houvesse azar, riscavam, com giz, em muro próximo do ponto de encontro, a senha previamente combinada.

O Tortosendo sufocava. Começara a perder a pacatez doutros tempos. Até o posto da GNR metera mais homens. Nas imediações as aldeias interrogavam-se receosas. Foi timidamente comentada a prisão de João Pinheiro, que a guarda surpreendera "a distribuir uns papéis ...", deixando-lhe, com falinhas mansas, a mulher e uma filha pequena sem sustento."

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