segunda-feira, 10 de março de 2014
Recortes do dito e do feito (31) - Lisboa, irmã de Rios
"Há um bom par de anos, olhos levados a ponto cumeeiro (sem ser o de ave de chapa, a turbo, em pleno voo) que não via uma cidade acender-se, logo, logo a seguir à hora do sol perder forças para a manter iluminada. A última vez que isso aconteceu foi no Rio, dos píncaros do Corcovado, onde betão, morro, floresta, asfalto e mar se harmonizam na maior festa urbana que conheço. Detive-me, agora, finalmente, a contemplar a dos corvos, que está bem mais a jeito. E, qual Rio desta margem do Atlântico, ali estava igualmente tudo o que os cariocas, em piso seu, dizem ter merecido demora do Criador.
Mas nisto, falemos claro, o que é bonito não é a cidade-noite, que, vista do alto, é igual às demais, nos pirilampos, nos candeeiros de mesa ou velas com que se alumia.O que é bonito é o crepúsculo, o que é fantástico é aquele céu de fim de tarde, com nuvens que semelham cisnes, a que o sol oferece recorte e magia, sempre que pode.
Lisboa contemplada (é ela, namoradeira, que hoje emoldura a crónica) do quase telhado de um dos seus hotéis mais expostos à urbe, tem Tejo verde-cinza, tem castelo-carapinha cor de alface seca, num dos cocurotos da cidade. Cá em baixo, entretanto, Tagus é rei e senhor, rasgando a meio a paisagem que o ladeia, como qualquer rio que se preze, e escapa-se para além do casario sem elevador e das espigadas torres de cimento que lhe encobrem a de Belém. Em tudo, farrapos de sonho, que, do tal pináculo em cimento armado em que me achei, se alimentam com o que vêem: um Cristo-Rei do tempo do Senhor Cardeal Cerejeira, a Vasco da Gama, por enquanto, mais estirador do que ferro, cornos de Ponte rebaptizada a despontar por sobre hotéis e coisas assim, antes e depois da ecológica manta do Parque, que é, apesar de tudo, uma espécie de regato a refrescar espaços circundantes, entre o movimento das ruas e o paralítico das casas. Lá está, da minha meninice, a Basílica da Estrela à espera que, à volta, se faça escuro para brilhar até longe, lá vão os barcos de poetas rio acima, rio abaixo, quase colinas, o Marquês com poderes de leão, misturados com reclamos apátridas (é vê-los apregoando multinacionais...) que a noite transformará em luminosos, apesar de acabarem por não nos presentear com o eléctrico sobe e desce de Hong Kong, ou mesmo, mais perto, dos que de uma Picadilly.
Em breve, virá a noite, que tudo uniformizará, na sua procissão das velas ou, quando muito, em Lisboa, numa madrugada de Santo António, com arquinhos e balões (...)."
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