terça-feira, 9 de junho de 2015

Canteiro de palavras - LXVI - O AMOR























Para uma Boa Amiga

Vergílio Ferreira

PENSAR

"O amor é exclusivista, já o disse. À medida que os filhos se multiplicam, atenua-se o afecto dos pais. De certo homem li há pouco ter quarenta filhos de quatro mulheres, há medida, pois, de dez por cabeça. Já não sabia o nome de alguns nem a que mãe pertenciam. Penso em paralelo no autor de muitos livros. Porque deve ser o mesmo. Mas a incontinência paternal pode corrigir-se com um simples acto improdutivo de fazer amor. Como pode um autor fazer amor sem a obra subsequente? Fazer amor em arte é gerar a obra. Porque o onanismo ou o acto contraceptívo é só o imaginá-la. E aí ela não existe. Nem o autor. Mas a obra não é um fim que primordialmente se procure porque é só a consequência de uma inquietação a apaziguar. Como um filho é uma consequência de um prazer a cumprir. Por isso a obra pode surpreender o seu autor como um filho a quem o gerou. Realiza-se uma obra para um mal-estar não ter razão. Ou para esgotar um poço que transborda. Ou para esgotar uma energia de uma procura e que é demais. E ser o absoluto de uma explosão que é logo nada outra vez. É assim."

Miguel Torga

AMOR

"A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência."


Florbela Espanca

INCONSTÂNCIA

"Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer ...
Atrás do sol de um dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando ...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também ...nem eu sei quando ..."


Sem comentários :

Enviar um comentário

Seguidores