segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XVII)


2ª parte da Entrevista com António Conceição Jr.


Aceitemos a redenção como uma coisa útil na vida das pessoas e dos povos em qualquer instante que aconteça e vamos à procura de marcos que dêem a imagem externa dessa redenção. Gostava que me falasse dos últimos dez anos...

Eu diria que não vejo nenhum marco significativo, tirando a governação de dois governadores que, para mim, foram importantes marcos na governação de Macau: o governador Garcia Leandro, que foi o primeiro governador após o 25 de Abril, e o Eng. Carlos Melância, que foi o homem que, enquanto macaense, me surpreendeu extraordinariamente pela sua enorme preparação relativamente aos assuntos do território e por uma grande visão estratégica. São, para mim, dois marcos importantes na história recente de Macau.

Relativamente às acções propriamente ditas, elas têm que ser vistas integradas no contexto da região e...e tudo está ainda para ser jogado... Trata-se de engendrar uma estratégia pacífica, pacificadora, e subtil, porque é falar a linguagem dos chineses... É preciso perceber essa linguagem porque são eles que estão em maioria.

Então que me diz ao facto de todos os anos se inaugurar aqui um monumento?... O que é que isso quer dizer?

Quer dizer apenas uma incompreensão da subtileza de Macau. Dizia-me um chinês, com toda a razão, que se os portugueses construíssem, em vez de monumentos, que têm um significado muito parecido com o dos padrões portugueses, construíssem coisas úteis, como uma escola luso-chinesa, como um hospital, como um lar para a terceira idade, talvez fossem lembrados de uma maneira muito mais útil do que os que encheram o território de monumentos...

Eu faço o exercício ao contrário: proponho à realidade portuguesa que aceite que, uma vez por ano, um artista chinês, que nunca tenha visitado Portugal, vá fazer uma escultura sobre o nosso país. Proponho aos portugueses que reajam sobre esta matéria...

Acha que, a títúlo póstumo, Camões poderia ser nomeado embaixador honorário e o 10 de Junho continuar a ser comemorado?

Acho que não. A presença de Camões não é dada pela importância que as comemorações do
10 de Junho, em Macau, lhe querem conferir. Há uma coisa que é paradigmática em Camões e na sua obra: Camões, apesar de alguns sonetos sobre Dianamene, jamais incorpora n'Os Lusíadas as diversas mitologias que fomos encontrando.

Aí eu chamaria muito mais o Fernão Mendes Pinto, com as suas crónicas. Porquê? Porque, de facto, repare-se como Macau e a India eram encarados na coroa... Eram encarados como lugares de castigo. E tudo isto faz pensar na negatividade do poder... Falava-se de degredo. Salazar mandava os degradados para África, como se África fosse o castigo...

A teologia da altura é que Portugal era pluricontinental. Mandar em África ou mandar emTrás-os-Montes, ou mandar em Lisboa, deveria ter, em princípio, os mesmo significado, mas não tinha... O Ultramar era um castigo, era uma coisa de segunda classe... Portanto, para mim, é importante dizer o seguinte: Camões representa, e é indiscutivelmente, o nosso maior poeta épico. Contudo, é importante que alguém, com alguma ignorância e atrevimento, diga que o rei vai nú... E o que eu queria dizer com isto é que, não contestando de forma nenhuma, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, gostaria de distinguir, sobretudo, o Dia de Portugal e das Comunidades, do qual Camões é "leit motiv".

Comunidades essas onde, desejaria lembrar aos compatriotas, meus irmãos do outro lado dos oceanos, existem portugueses, tão portugueses como eles, e que apenas nasceram na Ásia.

Então, no lugar do busto de Camões, "arriscamo-nos" a ver um crisântemo"...

Devo dizer-lhe o seguinte: há uma legenda nas Portas do Cerco, na fronteira com a China, que diz :"A Pátria honrai que a Pátria vos contempla"... Então eu gostaria de alterar, depois de 400 anos, enquanto macaense, e em nome daqueles muitos macaenses que não podem falar, dizendo: "honre-nos e contemple-nos a Pátria, que temos honrado há mais de 400 anos".


Cite-me nomes de portugueses que tenham honrado a nossa presença e porquê...


É uma pergunta inesperada. Considero que há nomes de grande importância e um deles, que está, exactamente, representado num quadro que tenho aqui à entrada do meu gabinete, é Camilo Pessanha.


Manuel da Silva Mendes, outro. Foram homens que viveram Macau na sua plenitude, viveram Macau, interessaram-se pela cultura desta outra civilização de que Eça escreveu "O Mandarim", sobretudo, o mandarim imaginário.

Estes homens conheceram os mandarins, falaram com eles, comeram com eles à mesa, souberam deles as formas do protocolo chinês, subtilezas chinesas, cultivaram colecções de arte, de que ainda sou conservador. Foram homens paradigmáticos da maneira como acho que um português deveria estar em Macau.


Não apenas para juntar dinheiro para a sua casinha, não para comprar as aparelhagens, mas para aproveitar este extraordinário benefício existencial que é viver em Macau.


O que é viver em Macau?...


Viver em Macau é reaprender e pôr em constante confronto tudo aquilo que aprendemos, reaprendendo e incorporando nos nossos valores, valorizando outros valores que, não sendo nossos, tem idêntica valia, mas que são de outros sinais, diferentes, e, assim, só podem enriquecer-nos...


A diferença alimenta o ego, o ego português, o ego macaense?... Perante o gigante...


Sim! Repare-se: qualquer macaense nasce a falar três línguas em simultâneo. Eu pergunto-me se em algum lugar português, tirando os emigrantes, existe quem nasça a falar naturalmente três línguas: o português, o chinês e o inglês. O francês vem, no liceu, por acréscimo.


Que iniciativas, ao longo de mais de quatrocentos anos, têm agora direito a compêndio de história?


A primeira e talvez a mais extraordinária iniciativa: Macau, apesar da sua insignificância geográfica, tem uma história riquíssima e pesada. Após a chegada dos primeiros portugueses e a sua já miscigenada vinda, criaram-se aqui as condições para o comércio entre a China e o Japão, na medida em que Japão e China não tinham relações desse tipo. Então, os já macaenses, porque nascidos em Macau, filhos de portugueses embarcadiços e de mães malaias, mães filipinas, mães indonésias, mães japonesas, e só muito mais tarde, apesar de as pessoas pensarem o contrário, de mães chinesas, souberam aproveitei, tiveram esta versão, esta oportunidade de serem os intermediários entre o Japão e a China. Curiosamente, porque eu estou ligado à Europa, e tudo isto é muito curioso: a grande riqueza de Macau, a grande prosperidade de Macau veio exactamente do comércio da seda, matéria-prima por excelência da moda e que os mercadores iam levar ao Japão, onde vendiam por preços elevadíssimos em prata, em quantidades astronómicas, isto é, com lucros de 500%!...

O que tornou possível mobilar palacetes com mobílias vindas do reino. Criaram-se fortunas colossais que deixariam, como ainda hoje deixam, outros, não macaenses, mas chineses daqui, empalidecer as fortunas portuguesas, porque a dimensão, em termos humanos e não só, é outra nesta parte do mundo.

E quem é que estava nisto tudo? Estava uma instituição, a primeira de todas, chamada Leal Senado, a Câmara de Macau, que era o senado dos homens bons, que, eleito democraticamente e a quem o Prof. Almerindo Leça dedicou um livro, chamando-lhe, com toda a razão, a primeira república democrática do Extremo-Oriente.

Assim foi! Isso é verdade. Macau foi governado por si próprio. Esse é o grande marco, a grande lição de sabedoria, de capacidade de entendimento de uma realidade nova, por aqueles que, de certeza, já falariam chinês.

Este é o marco que gostaria de realçar.

Há peças na arquitectura urbana que atestam essa nossa presença de uma forma
impressível?...

Claro!... Vou citar apenas uma paradigmática: o largo do Senado, descontados todos os adereços da miscigenação cultural, e um largo de Câmara tipicamente português. É uma Câmara, a Santa Casa da Misericórdia, o pelourinho, que já não existe. Portanto, é uma arquitectura, um urbanismo tipicamente português.

Mas umas ruínas de S. Paulo com um centro comercial em perspectiva...

Indeclinavelmente, há que fazer - eu não faria, mas... - concessões, porque não houve a percepção do crescimento demográfico e económico de Macau e não se preparou atempadamente a sua descompressão para as ilhas, preservando Macau, que seria hoje uma verdadeira jóia portuguesa do Oriente, em termos arquitectónicos.

O que são 30 andares por ocupar, num único edifício?



São o fruto de uma economia baseada na especulação, uma economia doente... Pode dizer-se o seguinte: infelizmente, com ligeiras adaptações, o modelo administrativo português foi transferido, "ipsis verbis", para Macau, como para todas as outras ex-colónias. E a sua falta de adaptação à realidade, e ao contexto e à falta de uma estratégia, permitiram que Macau se fosse afundando lentamente numa liturgia, enquanto Hong-Kong se transformava naquilo que é hoje, a terceira/quarta praça financeira mundial.


Entre Macau e Hong-Kong, geograficamente, distam 60 minutos. Esta a grande diferença. A presença inglesa em Hong-Kong e ausência portuguesa em Macau.


(última parte desta entrevista no próximo dia 3 de Fevereiro)










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