quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XXIII)


"O prometido é devido..."

Arq. Manuel Vicente (para concluir o seu depoimento):

Mas então, para depois de 1999, quais são as expectativas dos macaenses?


Sei lá... O futuro a Deus pertence. Ninguém sabe, realmente, nem os próprios chineses, nem o governo central da China, o que vai acontecer aqui. Acho que qualquer previsão que se faça, optimista ou pessimista, é equivalente e, portanto, não vale a pena pensar nisso...

Imagine agora que tem na sua frente uma assembleia de jovens arquitectos. Estamos perante uma realidade que é Macau. O que é que gostaria de lhes dizer?

Aquilo que sei foi-me ensinado, não me foi revelado, não me apareceu em cima de uma azinheira... Muito daquilo que sei aprendi em Macau. Também ninguém me ensinou, aprendi com a prática, com a vida, à maneira que os problemas foram aparecendo...

Cito alguém que estimo, que é uma mulher de reputação internacional, e que dizia que "há uma grande energia criativa no tentar transformar aquilo de que se não gosta em algo de que se gosta..."

Acho que a prática de Macau é a gente, como na história do samba, dar a volta por cima. É encontrar sempre o modo de transformar a adversidade numa força concordante. O que é muito oriental: o inimigo vem com uma força bestial, esquiva-se, aproveita a força com que ele vem, "dá-lhe uma ajudinha" e ele estatela-se no chão... Em Macau, tem que se trabalhar nessa base.

Há uma grande presença da realidade, uma presença muito forte, inegável. Não há torres de marfim, não há sítios por onde fugir, não há tertúlias, não há sítios onde nos possamos reunir todos... São todos uns animais, tirando nós... Isto é tudo uma vida muito real, muito concreta. Temos que negociar o nosso desejo com o desejo dos outros, à custa de argúcia, de trinta mil truques, de habilidades diplomáticas e políticas... Negociar o nosso projecto, não falo do projecto de arquitectura, digo o nosso projecto em geral. É uma aprendizagem de valor universal.

Macau é um laboratório?

Macau não é um laboratório. Macau é um museu.

Quando vim para cá, chamavam-lhe o "Portugal dos Pequeninos". Em termos de complexidade social e sociológica, e administrativa, de relações de poder. Só que era tudo observável e daí o "Portugal dos Pequeninos"... Chegava-se, e com facilidade percebia-se, toda a cadeia do poder, toda a cadeia das decisões, todo tráfego de influências, toda a importância dos diferentes peões neste tabuleiro de xadrez: quem era quem, porque é que as coisas aconteciam desta maneira e não doutra...

Percebia-se, realmente, o funcionamento da máquina, que não era menos complexa do que a máquina de um sítio maior, visto que tinha entradas muito diferentes e variadas. Não era, portanto, uma pequena cidade, era uma cidade pequena, que hoje é diferente, onde a complexidade só variava de grau, mas era exactamente do mesmo tipo.

Cito um sociólogo que dizia que, para as conhecer melhor as cidades, visitava as respectivas traseiras. Macau é uma cidade para ver assim?...

Tem umas traseiras muito compostas... Às vezes, tenho a sensação contraditória de que passei por aqui e que um dia alguém, um romancista, por exemplo, me há-de contar o que aconteceu... - comigo distraído...

Macau tem uma complexidade muito grande, que não estou a fantasiar. Penso que acontecem em Macau coisas do "arco da velha..."

Que ainda o surprendem em cada instante?...

Às quais não tenho acesso. Para já, eu não sou um coleccionador, nem um homem da noite... O exercício da minha profissão enche-me de tal maneira o tempo, que não há que me sobre para a ser um homem da noite, um homem "curioso", um homem de andar a ver o que se passa e a armazenar enredos político-sociais locais...

Contam-me, lembram-me, rio-me, reajo, guardo uma coisa ou outra, depois esqueço... Depois contam-me outra vez... "ah, é verdade, já me tinham contado isso, tinha-me esquecido..." Não sou, nesse aspecto, o mais disponível para contar histórias de Macau. Tenho, contudo, a sensação e, às vezes isso lixa-me completamente, que um dia hão-de contar-me coisas que se passaram em Macau, aqui e agora, neste preciso momento... "Olha que pena! Eu estava lá e nunca dei por isso... E é bastante divertido..."

São traseiras da acção, daquele gajo que cozeu uma família, que a deitou fora, ou que a comeu, ou que a serviu num restaurante... Eu estava cá e estava cá uma amiga minha suiça, para aí há uns dez anos, que era jornalista em Genève, e começaram a aparecer dedos das mãos, de várias mãos, não eram todos da mesma mão, na praia de Hac Sa... Achou-se que sim, que tinham aparecido dedos das mãos na praia de Hac Sa... Isto já é muito revelador da atitude local, da sensibilidade local: "olha, apareceram dedos na praia de Hac Sa!..." A gente já está à espera do imprevisível, do imprevisto, do esquisito...

Ela era suiça, olhou para mim, espantadíssima, muito excitada: "então, estão a aparecer dedos na praia tal..." "Ah, sim senhor, estão a aparecer dedos, que engraçado, que interessante, claro..." E eu disse-lhe: "ouve lá, se aparecesse uma unha do pé no lago de Genève, não se falava noutra coisa e já estavam não sei quantos suiços à volta do lago a ver se aparecia outra unha... Aqui aparecem bocados de dedos e de mãos e vocês encolhem os ombros e dizem: onde é que a gente vai jantar?..."
Isto para dizer que continuam a acontecer coisas em Macau, no "bas fond" de Macau, também nos jogos de poder e da política, quem é quem, quem é que influencia o quê, porque é que não sei quem disse aquilo num determinado sítio, em vez de dizer outra coisa qualquer?..." São uns meandros tais que eu, realmente, não sei o que é que se passa, também não sei o que se passa no mundo obscuro dos vícios privados ou dos vícios públicos... E tenho a certeza de que Macau é um sítio que dava para não sei quantos romancistas talentosos escreverem não sei quantos romances - e todos teriam agarrado um bocado da realidade de Macau.

Se um budista fizesse aqui um romance, tinha os mesmos argumentos-base de um católico?.

Não sei qual é a vitalidade do catolicismo chinês local. Não sei qual é a vitalidade do budismo tauísta aqui... Não sei... Sei muito pouco de Macau, paradoxalmente, mas penso que a maior parte das pessoas sabe muito pouco desta terra...

Do ponto de vista das religiões as coisas não são fáceis. Do ponto de vista das culturas, são heterogéneas. Do ponto de vista da história, é variada. E a arquitectura, neste contexto, onde as variantes são tão grandes e também ela heterogénea... Que ordem é possível pôr na arquitectura que é, ela própria, um universo espantoso de variedade?...

Se calhar é um pouco a transição de tudo isso, de todas essas contradições, de todas essas dificuldades. Raramente um projecto meu acaba como o projectei... Durante a obra tenho que fazer tanta ginástica, tantas habilidades e tantas piruetas para conseguir recuperar a coerência que, de facto, o grau de coincidência entre um edifício aqui acabado e o projecto em que ele se baseou é, com certeza, muito menor do que na Europa ou na América.

Na Alemanha deve ser 100%, em França são 80, na América também devem ser 89 ou 90%...

E aqui?...

Aqui... anda nos 20%!... Sobretudo, por causa das manigâncias, dos jogos dos empreiteiros, dos jogos das fiscalizações, dos jogos da má execução, dos jogos da incompreensão, das coisas que esgotam de repente no mercado e de que têm que se arranjar substituições. Dos próprios desejos do cliente que, à última hora, quer as coisas de uma maneira, em vez doutra...

É um caminho acidentado, é um caminho que transcreve bastante todos os condicionamentos. Ainda que não tivesse outra especificidade, a arquitectura de Macau tem essa de situar sempre numa zona quase improvável, para a qual é preciso um treino muito especial para conseguir levar uma obra até ao fim.

Não é qualquer arquitecto, por mais experiente e mais competente que seja, que é capaz de sobreviver no meio desta bagunça, deste bordel. Por exemplo, o projecto da TDM (Televisão de Macau - que começou a funcionar há doze anos) foi feito no fim de 83, começou a ser realizado ao mesmo tempo que a obra e foi sendo acrescentado, modificado, à medida que a obra prosseguia...
Começou por ser uma garagem para meter o carro de exteriores, com um pequeno estúdio ao lado, e acabou num complexo...
As casas de penhores têm futuro?

Acho que sim!...

A próxima entrevista é com a Drª Margarida Rato.

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