domingo, 21 de fevereiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XXI)


Decisões políticas inequívocamente tomadas por quem tinha que as tomar, em tempo oportuno, com ou sem audição dos que, nos diversos níveis e sectores, tinham o dever de falar, as entrevistas que aqui se revelam têm, como se deixa ver, com a vantagem do distanciamento, um único objectivo: reunir pontos de vista que possam ajudar a escrever a História de Macau.

Cheguem-se, portanto, à frente os historiadores. É o convite que se renova.

Continuemos, entretanto, devolvendo, para já, a palavra, não censurada, ao Arq. Manuel Vicente. As perguntas e as respostas:

Mas um arquitecto português faz em Macau arquitectura luso-chinesa ou faz uma arquitectura que poderá estar aqui ou nos arredores de Nova Iorque, ou mesmo naquela cidade?

Ao nível consciente, nunca parti - e acharia uma atitude paternalista - para a resolução de nenhum problema profissional que me tenha sido posto em Macau com pressupostos étnicos ou
"folclóricos". Sempre parti de um ponto de vista técnico, da específica técnica, da minha específica formação profissonal. Aí compreendo a minha idade, a minha origem, a minha formação...

Agora a um outro nível mais súbtil e mais difícil de quantificar, ou de ponderar, imagino que se nunca tivesse estado em Macau, não faria exactamente a mesma arquitectura que faço hoje. E que se a estiver a fazer para Lisboa não a farei - e já tenho feito e tenho tido lá alguns trabalhos - exactamente da mesma maneira como a faço em Macau.

Portanto, há a um nível inconsciente, onde se faz a fusão dos diferentes "inputs" que nós recebemos (visuais, vivenciais) e que está para além da decisão, da ideia, do imediato, do primeiro nível de consciência.

Mas quando se estão a recuperar zonas degradadas, há algumas "regras", algumas orientações, que ficam logo na cabeça?...

Procuro que a minha arquitectura seja pensada em contexto. O que é eu quero dizer com este chavão?!

É que a minha arquitectura procura sempre responder àquilo que possa deixar pontes para aquilo que possa vir a ser. É sempre um programa de abordagem de qualquer problema profissional que me ponham. Agora isso tem muito a ver também com o conceito de património e de herança...

Eu acho que herança é qualquer coisa que se recebe com uma responsabilidade que não é nada para uma pessoa pôr numa prateleira e dizer aqui está... Há aquele lema de "um futuro para o nosso passado", mas eu costumo dizer "um presente para o nosso passado". Acho o nosso presente, que a gente construiu com o passado, há-de ser o passado do nosso futuro, não é um passado pelo nosso futuro, que eu também costumo referir, em jeito de trocadilho.

Acho que temos obrigação de construir um passado para o nosso futuro. Não temos obrigação de construir o futuro. Seria abusivo. Temos visto algumas doutrinas, de algum modo, totalitárias, preocuparem-se muito com o futuro e acabarem por arranjar um presente miserável e sem futuro nenhum.

Preocupar-nos com o futuro pode ser uma grande tentação, mas pode ser uma tentação bastante abusiva.

Entendo que o que temos é que nos preocupar com o presente que é aquilo que devemos legar ao futuro. Temos que tomar conta do presente, porque se o não fizermos, ninguém o fará e o futuro ressentir-se-á por não ter um passado que valha a pena. Procuro criar um passado que valha a pena, dentro dos meus limitados meios e das minhas competências, para o nosso futuro.

Não aceito que o património seja algo de intocável, nunca aceitei, não é esse o meu ponto de vista, nem a minha posição. Procuro é que as várias intervenções que tenho feito no património acabem por fazer dele e do ligar onde ele se possa inserir (é uma qualificação difícil...).

Por vezes é melhor, não é uma questão de ser melhor ou ser pior... Algo que, de algum modo, marque uma aproximação histórica de um determinado momento da cidade, do tempo da cidade.
Estamos aqui - agora. Estamos a fazer algo. Não significa deitar tudo abaixo porque isso é recusar a continuidade e recusar o passado. Mas significa intervir dialecticamente sobre algo que exista, transformando-o em algo que contenha o que foi, mas que seja já outra coisa e que faça juntamente com o que está à volta em sintonia, em simpatia com o que temos em redor, outra coisa também do que está à volta.

Acha que Macau está a ter esse crescimento?

Não. As cidades, às vezes, reflectem os valores que lhe estão subjacentes. Penso que em Macau os valores dominantes, aquilo que faz correr os "samis" todos de Macau é mais frágil, tem menos sentido social do que o que acabo de referir. Não estou a dizer algo que seja único, mas estou a dizer que não é predominante em Macau. E dificilmente seria. Se nos debruçarmos um pouco sobre a sociologia do local e sobre a constituição étnica da população, também seria muito difícil que Macau tivesse atingido aquela maturidade e a tranquilidade de se olhar a si própria.

Toda a gente está aqui um pouco de passagem. Se olhar para a população chinesa, que é maioritária, é uma população que só um número pequeníssimo e reduzidíssimo é que tem mais de uma geração em Macau, ou que nasceu em Macau, ou que é filho de alguém que nasceu em Macau. Há menos chineses cujos pais nasceram em Macau do que portugueses cujos pais aqui nasceram.

Aí o percentual deve-se inverter drasticamente. Penso que, apesar de tudo, há mais macaenses e até, eventualmente, europeus, cujos pais já nasceram em Macau do que chineses que tenham nascido aqui. Ou então anda ela por ela... O grosso da população é recente, pós-Guerra ou até pós-Grupo dos Quatro ou pós-Queda de Mao.

Esta grande turbulência que tem marcado o século XX na China, talvez, em limite, maior até do que a turbulência que tem marcado outros sítios do mundo, com excepção de África, mas a China tem sido uma região marcada por mudanças muito drásticas.

O fim do Império não é uma uma mudança de regime, o Império da China era um modo de ser, era uma coisa que tinha séculos e séculos para trás. Não é propriamente a mudança de um regime monárquico por um regime repúblicano.

Depois houve a Revolução Socialista, a implantação do socialismo na China, as próprias querelas dentro desses diferentes modelos de implantação do socialismo. Neste momento, uma abertura é uma contradição grande: ter uma economia de mercado planificada, que são coisas irredutíveis .

Tudo isso provoca vagas de decidências, vagas de pessoas que caiem das posições de favor que tinham, de refugiados, digamos assim, de pessoas deslocadas.

E, em Macau, uma parte significativa da população é constituída, justamente, por pessoas da população chinesa deslocadas. Da população portuguesa, uma parte muito, muito significativa é constituida por funcionários públicos que têm contratos a prazo, que vêm aqui passar um, dois,três, quatro anos. Macau é também o seu destino último. É também um ponto de passagem.

Portanto, estamos a falar de uma cidade que é, para o melhor e para o pior, um ponto de transição. Nada disto é totalmente negativo, porque, se fosse, Macau era um sítio horroroso, e eu não acho que Macau o seja, acho que é um sítio bastante estimável.

E há obras significativas de portugueses no contexto de que acabou de falar, que, de certo modo, é o que enforma a sua acção? Podemos destacar nomes, não sei se, por exemplo, dos últimos dez anos?...

Considero que a Macau contemporânea, para mim, se me pergunta, e com a máxima franqueza, embora seja parte suspeito, dada a minha profissão e a minha intervenção concreta na sua configuração contemporânea, é, ainda assim e apesar de tudo, uma cidade muito interessante.

Poderá ter os seus excessos, poderá ter os seus betões armados a mais e árvores a menos, enfim, o que se queira, poderá estar mais ou menos dentro da moda ecologista que vigente ou não. Eu digo que é uma cidade real, respondendo muito a uma prática real, social, económica, financeira, política... Acho que éuma cidade que transcreve muito bem a sua própria realidade, a sua própria dinâmica social, económica e financeira e as particulares condições de ser, apesar de tudo, um espaço físico com estatuto colonial, governado por estrangeiros.

Há arquitectura assinada?...

Sim. Há arquitectura contemporânea em Macau, em certos casos, tão boa quanto noutro sítio qualquer. Em alguns casos, até melhor do que noutros locais.

É sempre pouco elegante, ou há uma convenção que impede que as pessoas falem de si próprias, mas devo dizer-lhe que um projecto que fiz, já em fins de 1979, para realojamento de população de barracas, com um programa mínimo, com um programa dos mais no osso que se possa imaginar, ganhou, recentemente, uma distinção bastante siginificativa: uma medalha de ouro da Organização Regional da União Internacional dos Arquitectos (UIA), que premiou esse meu projecto.

Esse projecto já tinha sido distinguido, ao longo dos anos, por publicações em várias revistas da especialidade estrangeiras. Portanto, repare, não é propriamente o sentido do labrego, nem dos pategos, nem de ladrões, nem de pessoas atrás do dinheiro fácil... Há realmente muito esforço, estimável, louvável, da parte do número suficiente e significativo de arquitectos portugueses que estabeleceram escritório em Macau e que têm, apesar de tudo, semeado pela cidade uma série de exemplos de arquitectura muito, muito interessante.

Pode citar nomes?...

Vicente Bravo Ferreira e o sócio dele Paulo Sommer, com os quais tive "atelier" junto, até 1983.Fizemos bastantes coisas em equipa e depois cada um seguiu o seu caminho. Eles os dois continuaram associados e eu mantive o meu "atelier" separado.

Há o Bruno Soares, que é um homem bastante prestigiado no território; há um arquitecto mais jovem e mais desigual, que é o Adalberto Ribeiro, mas que tem obras indescutivelmente interessantes.

Há uma mulher, a arquitecta Helena Pinto, que também tem uma série de obras interessantes.

Não quero excluir, mas isto também não é exactamente um bodo aos pobres: com certeza que há colegas meus a exercer em Macau que fazem muito má arquitectura, mas não vale a pena citá-los.Mas também há arquitectos que fazem um esforço bastante louvável. Certo é que as coisas não são fáceis para fazer o que quer que seja em Macau. É uma cidade onde o poder é muito burocratizado, onde há, por parte do poder económico, que normalmente é chinês, um receio de desagradar ao poder administrativo e ao poder político, que é português.

É, em suma, estamos perante uma cidade muito controlada, onde há grande medo do risco, onde acaba por ter que ser à força, mesmo que não seja por feitio, ou por escolha, muito conservador, com medo de arranjar problemas, chatices, dificuldades, que haja uma perseguição - não é que haja um pressecutório em Macau. Mas há dificuldades burocráticas imponderáveis, que são mais capazes de entravar um projecto interessante e inovador do que um projecto puramente conformista e que não ponha problemas a ninguém na sua aprovação.

É natural que para as pessoas que estão na zona de investimento que, apesar de tudo, está sempre cheia de surpresas, a economia de Macau seja muito volátil, muito frágil. A imobiliária é um sector importante desse movimento económico, desse movimento financeiro. É natural que as pessoas não queiram arranjar mais problemas do que aqueles que genuinamente não
podem evitar.

Portanto, os arquitectos não entram muito nesses problemas, entram se lhes resolverem problemas... Não é fácil em Macau construir, conceber, realizar qualquer coisa que fuja ao conformismo, a este tipo de modelo pré-estabelecidos, seguro e garantido de que não levanta chatices...

Portugal em Macau tem sido missão, pimenta, aventura, o quê?...

Acho que, ultimamente, tem sido burocracia com os seus pólos de dinheiro fácil, com os seus pólos de vida fácil, com os seus pòzinhos de desinteresse.... Eu não considero que a presença de Portugal em Macau tenha sido muito exaltante recentemente, salvo raros e honrosíssimas excepções. Há muito pouca gente que esteja aqui por afecto e entendo que até há uma grande recusa em estabelecer uma relação afectiva...

Há quem lhe chame caldo verde, isto é, dá um jeito ao estômago, mas não fortifica...

Sim, acho que as pessoas acabam por objectivar muito a razão da sua estada em Macau. Ganha-se melhor do que em Lisboa... Permite um certo à vontade...

Ganha três vezes mais e gasta duas vezes mais?...

Eu penso que, se calhar, gasta o mesmo e ganha três vezes mais... A não ser que tenha fantasias muito grandes... De qualquer modo, as pessoas também são menos solicitadas do que em Lisboa. Há menos sítios para onde ir...

Muitas vezes surge esta pergunta: "achas que ainda é possível fazer alguma coisa?..." E eu continuo a achar que sim. "Querer é poder". Ainda no outro dia disse isto publicamente. Que ainda é possível fazer muitas coisas interessantes, que não implicam, necessariamente, com a Declaração Conjunta, nem têm têm grande carga de política internacional, mas que, localmente, ainda se poderiam fazer muitas coisas, desde que se quisesse e soubesse...

Quando me faziam essa pergunta há dez anos, então parecia uma pergunta completamente abstrusa, porque eu há 10 anos diria: "pode-se fazer tudo...". Hoje não se pode fazer tudo, mas pode fazer-se muita coisa ainda, e essa muita coisa que se pode fazer vale a pena...

Tomara eu poder ter todas as energias para aquilo que posso - ou me permitem fazer. Teria muitíssimas coisas para concretizar em Macau - se me deixassem...

(cont.)

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