sábado, 27 de fevereiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XXIV)


ENTREVISTA com a Drª Margarida Rato


Dr.ª Margarida Rato, onze anos de Macau. Portanto, uma possibilidade de falarmos do "boom" do território.

Gostaria de começar por lhe perguntar, enquanto mulher que está aqui há relativamente pouco tempo, mas que tem, com certeza, já uma opinião formada sobre várias questões, o que é que, a seu ver, singulariza este espaço das regiões vizinhas?

É, fundamentalmente, a cultura. Como consegue aperceber-se, os portugueses conseguiram deixar aqui algumas marcas, nomeadamente, na arquitectura, que é ímpar nesta zona. Macau não se compara com Hong-Kong, embora eu goste muito de Hong-Kong.

Se nós olharmos para Hong-Kong, aquela arquitectura é fenomenal, é qualquer coisa de moderníssimo. Mas, entretanto, nós olhamos, dentro da pequenez deste território, e conseguimos encontrar aqui uma traça original portuguesa, que se transmitiu ao longo de 400 anos.

Por outro lado, a maneira de ser das pessoas também se transmite.

Na maneira de estar e de conviver com a comunidade chinesa, não há um entrosamento muito profundo, mas há uma coexistência muito pacífica entre os portugueses, os chineses e qualquer outra comunidade. A verdade é que, se olharmos a fundo, conseguimos encontrar neste pequeno espaço, umas boas dezenas de comunidades que coexistem pacificamente.

Isso é um aspecto que julgo que é cultural e conseguiu ser deixado no território: a nossa maneira de pensar, a maneira de ser... Não conseguimos mudar a maneira de pensar da comunidade chinesa, nem o contrário é verdade, mas as pessoas entendem-se.

Nós respeitamos a maneira de ser deles, nós sabemos que há questões como, por exemplo, a face, que para a comunidade chinesa é muito importante e que não nos custa respeitar. Eles próprios nos dão a face também. Portanto, essa sua maneira de ser transmite-se igualmente para nós. É uma das coisas que mostra o respeito de uma comunidade pela outra.

Portanto, depois de 99, acha que se poderá manter essa face?...

Julgo que sim.

Decorridos este séculos de convivência racial, o que é que acha que vai permanecer, de facto?

Vai haver sempre uma sensibilidade diferente da nossa. Nós também estamos a fazer todos os possíveis para deixar as nossas marcas por aqui. Não só a nível dos monumentos, mas ao nível da maneira de ser e de estar, do modo como nos compreendemos. Penso que isso vai ficar.

Há também muita gente que quer continuar. Não só da comunidade macaense, em particular, mas da comunidade portuguesa.

Isto quer dizer que vai haver aqui uma continuidade e que a comunidade chinesa vai respeitar essa continuidade. Não estou a dizer que os macaenses fiquem nos lugares-chave da Administração. Mas vão poder continuar a ficar por cá, vão ser as pessoas bastante úteis e, por isso, vai haver uma manutenção.

As pessoas nasceram aqui, os macaenses são de cá, gostam disto. Muitos deles só não ficarão se não lhes forem dadas possibilidades. O que julgo é que pode haver um período de transição em que a comunidade chinesa tem, de facto, que tomar conta das coisas, mas a abertura vai dar-se...

Não vamos ficar, se é possível fazer a antevisão, uma espécie de Malaca, a sonhar com Portugal?

Penso que não. Só há um problema, que é a língua. Acho que a língua, se houver empenho para a manter, é natural que se mantenha. Mas já hoje se pode verificar que, fundamentalmente, as pessoas falam chinês e... algumas coisas de português.

Dizem-me que, através da TDM, se está a fazer um esforço nesse sentido. Confirma?

Sim! Está a fazer-se um grande esforço para manter viva a nossa língua. Embora se pudesse ter começado a fazer isso mais cedo...

Isto não é crítica nenhuma, porque as condições, provavelmente, não terão sido as melhores para encetar esse tipo de processo, mas sou de opinião que nunca é tarde e que se pode tentar fazer tudo para que a nossa língua não se perca.

Há um fenómeno contrário: nós próprios não aderimos à língua chinesa. A língua chinesa é muito difícil, mas, se calhar, tivesse havido um empenho pessoal e de quem de direito para que as pessoas soubessem, pelo menos, o cantonense ou o mandarim, fundamentalmente mandarim, julgo que a comunidade portuguesa teria conseguido um entrosamento maior com os chineses. E o problema é que, às vezes, nós estamos à beira deles e apenas temos a percepção do que se está a falar.

Eu sei que a língua chinesa é muito difícil, mas poder-se-ia ter feito um esforço... Se me perguntar se noto alguma diferença de há uns anos para cá... noto, noto... Noto que há muitos mais portugueses interessados em saber o mandarim e quase todos esses portugueses são aqueles que estão a pensar em ficar...E que já se aperceberam que o mandarim vai tomar o lugar que a língua inglesa tem tido...

Se essas pessoas souberem mandarim têm sempre a possibilidade, não só do negócio, mas do contacto, da permanência. E há hoje, da parte da comuniudade portuguesa, muita gente a aprender mandarim. E cantonense, algumas pessoas.

O problema da língua é que, de facto, o chinês tem, por exemplo, um termo que nós, dizemos com uma entoação, e eles têm cerca de sete tons diferentes para outros tantos significados da mesma palavra. Já não falo da escrita, dos caracteres. Ora, para nós, que temos o hábito de uma entoação uniforme, é muito difícil aprender cantonense. Também há da nossa parte uma falta de entrosamento.

É capaz de de citar nomes que tenham marcado a nossa presença? E porquê?

Não vou entrar em figuras da história que, por certo, já registou. E também não gostava muito de entrar no campo político. Falar-lhe-ía, entretanto, no aspecto de pessoas que tenho pontuado pela sua acção no domínio da cultura no território. Por exemplo, do Eng Melancia, que, a meu ver, era uma pessoa muito, muito atenta aos aspectos culturais. Fundamentalmente, ele.

O governador Pinto Machado, também era uma pessoa de grande cultura. Esteve muito pouco tempo no território, não teve espaço para deixar obra que se visse, nesse aspecto da cultura. No entanto, foi uma pessoa que teve um privilégio, para mim, e para muitas pessoas que estavam aqui nessa altura.

Julgo que o governador Pinto Machado teve uma faculdade muito boa, que foi pôr as pessoas todas a falar muito francamente. Com o governador anterior, tinham tido algum receio. Tudo para elas era...

Estamos no ano...

Pinto Machado, 87...88... Considero que ele, nesse aspecto, permitiu um desabrochar das pessoas muito claro. Depois, o grande impulso terá sido dado pelo Eng. Melancia. Vimos os festivais começar a aparecer, todo esse tipo de iniciativas que, evidentemente, neste momento estão com um desenvolvimento muito maior, o que é natural, é a continuidade.

Isto quer dizer que, a nível deste governo, também houve atenção para esses aspectos. Porque poderiam ter deixado para trás... Não só através da simbologia que é deixada, mas há uma preocupação governamental, que tem sido crescente...

Há iniciativas recentes que vão ficar na história?

Os festivais de música, o aeroporto, a nova ponte. Há uma abertura ao exterior e um facultar de interpenetração de culturas, que já existe, mas agora tem um acesso muito mais facilitado.

O aeroporto não vai ser concorrente do de Hong-Kong?

Depende...

Concorrente ou complemento?...

Julgo que pode ter essa função complementar.

Numa perspectiva cultural e política, acha que Camões é "candidato", a título póstumo, a embaixador honorário de Portugal em Macau? Ou aquele Camões que se comemora no dia 10 de Junho vai figurar na lista dos esquecidos?

Ele figurar na lista dos esquecidos, não irá figurar... Eu não sei se com a importância e relevância que tem hoje e que a comunidade portuguesa pontua muito bem... Não sei se terá a mesma pujança no futuro. Mas que haverá sempre uma referência a Camões, enquanto poeta português e símbolo da nossa cultura, haverá...

Acha que Portugal tem sido aqui missão, pimenta, aventura, o quê? Portugal em Macau é Fernão Mendes Pinto?

Portugal, na altura em que eu vim, falava muito pouco de Macau.Penso que teria outras preocupações maiores. Ia sendo gerido ao sabor dos acontecimentos. Era cá colocado o governador, que teria as suas dificuldades... Macau tinha muito pouca ligação a Portugal. Neste momento, Macau tornou-se importante e aí talvez não seja só por outros tempos e pelas comunicações mais fáceis. Julgo que Macau, para Portugal, começa a ter um outro significado também.

Nós vamos deixar este território num clima de franco entendimento, as coisas não se processam só por interesses culturais, processam-se também por interesses económicos e, igualmente, nacionais. Penso que Macau vai ser sempre um ponto de ligação de Portugal à China e que há todas as condições para que isso, no futuro, se mantenha.

Nós não víamos cá presidentes da República e hoje vemos - e vemos com agrado. É impulsionador para nós, aqui, tê-lo e saber que se preocupa connosco...

É com desagrado, digo-lhe também, que nós vemos que Macau aparece em Portugal por uma via muitas vezes negativa, que não corresponde à verdade, que não tem a importância que muitas vezes é dada em Portugal, a nível jornalístico.

De qualquer maneira, em Portugal despertaram para Macau e julgo que isso vai ser fundamental, sobretudo para a nossa continuação aqui, não como Administração, mas com outras vertentes que são de preservar. E entramos aí no aspecto arquitectónico, na parte cultural.

Em suma, julgo que a atenção que Portugal está a dar a Macau, não se traduz num estar por estar, por ser bom sítio para fazer ponte para a China, do ponto de vista do negócio ou para alimentar melhores ligações entre dois países... É muito mais do que isso.

(cont.)

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