sábado, 30 de julho de 2011

"O POETA" - livro a haver ( XIII )

"(...) As décadas fazem aos grandes centros urbanos o mesmo que os anos fazem aos homens: cárie dentária. Ambos procuram lavar muito bem os dentes da frente, mas não raro se esquecem de que os que mais trabalham são os da rectaguarda ...


Da fachada ligeira e ajanotada do Chiado, a lamentar-se apenas dos fumos da Brasileira, Isidro fora parar a uma Paris recuada, mas vibrante, ainda que cheia de pedra nos queixais e, volta não volta, tresandando mau hálito.

Óleo de Emília Alves

Esquecida a tormentosa viagem até Austerlitz, em que, no meio daquele salsifré, tudo o que de dramático tivera a viagem do pai lhe acudira à memória, acabara por se instalar a uns duzentos metros do largo da Sorbonne, no hotel de Madame La Coste, na rua Toullier, que talvez não pudesse orgulhar-se da tradição de um Bragança, seu vizinho em Lisboa, mas acabara por ser aquele de que conseguira dispor sem malbaratar francos. "Aliás, o Bragança até nem ..."


Isidro juntava aos conhecimentos de francês que aprendera na secundária, os que ganhara no dia-a-dia de um Cais do Sodré poliglota. E se não era um honoris causa pela universidade lisboeta da borda d'água, poder-se-ia considerar, na circunstância, um licenciado em românicas, com laivos de saber em língua de camones. Um doutor a cheirar a maresia, mas um doutor q.b., numa terra onde português é honra, trabalho - e gestos -, havendo uns intelectuais, alguns políticos e vários artistas de Lisboa, de Coimbra, de ... de ...
 
( ...) A breve trecho passou a conviver com as pequenas tertúlias dos que, como ele, consideravam incompleto tudo o que faziam no domínio artístico. Ao princípio, assentava arraiais quase sempre no La Palette, mas, como abelha em incessante busca, era frequente vê-lo no Le Dôme ou no La Rotonde, onde, sobretudo neste último, iam desaguar os que frequentavam as academias livres de desenho e pintura. Por ali haviam passado, aliás, nomes como Modigliani, Degas, Matisse, Braque, Buffet, Picasso, Dali, para não falar num Hemingway, num Trotsky e até num certo visionário chamado Lenine.


- Aconselho-lhe a Academia de la Grande Chaumière, aqui em Motparnasse. Temos também a Collarossi, mas, se me permite, sugiro-lhe as secções de pintura e de modelo nú da Chaumière. Não me pergunte porquê, mas dá-me ideia que tirará maior proveito desta do que de outra qualquer. Olhe, curiosamente, ali se travaram de amores a Vieira da Silva e o que hoje é seu marido, o excelente pintor húngaro Arpad Szenes, que já andava pela Academia quando ela para lá foi. De qualquer modo, o importante não é frequentar uma academia, o importante é frequentar Paris. Experimente ir todos os dias à Chaumière e regressar a casa sem ter passado, pelo menos, por uma galeria de arte e sem estar uns minutos na cavaqueira connosco e aguarde ... Nós é que somos a luz desta cidade! O que o meu amigo precisa é de um banho de imersão no nosso meio cultural. Qual Londres, qual Nova Iorque, qual história!... Façam desaparecer Paris e verão o sarilho que arranjam ... Não deixe de visitar com regularidade uma Galerie Pierre, ou uma Galerie Cardinale. Vá até à Galerie Staedler, onde expõe com frequência a vossa/nossa Vieira da Silva ... Paris só tem arredores ... Acho que está de parabéns por ter vindo até nós. Brindemos à sua chegada! ... Rapaz, tráz o champanhe! Hoje, meus senhores, paga o ...


- Isidro ... Isidro Lobo ..."

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