segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Um acto de fé *

* creio que publiquei este apontamento no Diário de Coimbra (1997), mas não tenho a certeza. Mas lá que foi publicado na imprensa foi e rezava assim:



Da história, sei, autênticos, princípio e fim. Imagino-lhe o miolo, numa altura em que releio Eça e vejo muita televisão.

No inicio, ela era a mulher do campo, sexagenária, viúva de fresca data, rosto (ainda) "de apetite", no dizer maroto dos espelhos longamente consultados durante anos de jejum sexual por insuficiência do extinto.

Ele, padre, circunspecto divulgador domiciliário da vida de santos e pregador convincente, em lugar próprio, de palavras inspiradas no melhor da doutrina cristã, sexagenário também, solteiro por promessa, jovem de aspecto, por virtude do bom passadio e dos ares despoluídos de serrana paróquia.

Chegada a hora, confessa-e a viúva ao padre das boas palavras e semblante provocador de vontades insatisfeitas. Há entre um e outro a rede de malha estreita de um confessionário à hora da sesta.

- Em nome do Pai ... - adivinha-se o sacerdotal ciciar.

- Em nome do Pai ... percebe-se, nos lábios e nos gestos, a resposta feita devoção e santidade da viúva desgostosa. - Sinto-me muito só, senhor padre! Sabe, enviuvei no ano passado e ... cada vez pior ... Nem sei explicar, senhor padre ...

- Só ...

- Só, muito só ... E em pecado ...

- Em pecado?...

- Sim, em pecado. Não por más obras, mas por pensamentos, senhor padre. É uma solidão que me afronta a alma. Tomam-me uns calores ... Olhe, rezo, rezo muito ...

- Mas tens visões?...

- Se tenho, senhor padre! Ando muito nervosa. Preciso de me abrir com alguém como o senhor padre.

- Sim, minha filha!

- Sabe, tenho saudades do meu marido. Era um homem bom - e, Deus me perdoe, assim bem parecido como o senhor padre.

- Então!...

- Verdade, senhor padre.

- Reza comigo, vá ... Pai nosso ...

- Pai nosso ... Ó senhor padre, quando é que me arranja uma colecçãozinha de santos?...

- Queres?...

- Queria tanto, senhor padre ... Sinto-me tão só ... Até se me dá vontade de chorar ...

- Olha, minha filha.está descansada que vou ver se tos arranjo e depois, calhando, até tos levo lá a casa ...

- Sinto-me tão só, senhor padre!

- Não te preocupes, a partir d'hoje à noite, vamos os dois, todos os dias, discretos, se quiseres, no meu carro, a freguesias distantes deste confessionário, entregar santinhos aos fiéis. Espero que isso possa trazer-te alguma distracção. Assim seja!

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