quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Seguro contra todos os riscos*

* é o título de uma breve crónica publicada pelo signatário na lusa imprensa e, mais tarde, reproduzida em três páginas do livro de bolso que me rompeu virgindade pessoal na matéria ("À Sombra da Minha Latada").

Rezava assim (é um pouco extenso para um suporte electrónico como este, mas ninguém é obrigado a passar do primeiro parágrafo, ou nem isso ...):
















"No dia em que fazia anos que Teodorico chegara da Terra Santa e se apresentara à titi com a debochada camisa de dormir da Mary, estava eu a caminho da Primeira Comunhão, na Basílica da Estrela, em Lisboa.

A esse piedoso acto seguiu-se, no ano imediato, outra etapa na minha católica, apostólica e romana educação - a da chamada Comunhão Solene. Logo depois, para completar todo o ciclo inicial de integração no Reino de Cristo, seguiu-se o Crisma. O meu primo Joaquim - que Deus tenha em eterno descanso - apadrinhou. E durante anos, ainda menino e moço, fiz da Igreja lugar de paragem regular e obrigatória. As ocupações escolares e os meus colegas mais devassos foram, contudo, pouco a pouco, relaxando este encontro regular com a Casa da Fé e, quando casei (pela Igreja, acrescente-se) já foi o padre Miguel que teve que me auxiliar a dizer as orações ...

Se vigário de Cristo nunca teria sido, praticante ferveroso estive quase a ser antes de chegar à "idade da razão". Depois fiquei assim um católico de "três ao vintém": nem libertino que afronte, nem beato que cegue. E quando há três anos  (1976) fui a Roma achava-me naquelas meias-tintas que julgo não perturbarem a inteligência, nem embotarem o espírito.

Entrei, antes de tudo, nas catacumbas, depois vi o papa. Isto é, primeiro fui à Catedral da Alma, a seguir entrei na Catedral do Homem. E, as duas à escolha, foi mais forte a impressão deixada por aquela. À virginal pureza dos Tempos do Aparecimento a lembrar a primeira Comunhão de um qualquer loiro rapazinho sem mácula, sucedeu-se o humano, elaborado, polido Vaticano com interesses na Fé, mas também com muito de fé no interesse... Longe das certezas dos que, obedecendo apenas a irresistíveis forças interiores, cavaram galerias - rezando. E para rezar.

Ficaram depois, por vezes, mais longe do ideal os que subiram sem Fé, as torres das basílicas do que os que, acreditando, perfuraram mais e mais fundo subterrâneos, salvando a vida, com certeza, mas fazendo-o, acima de tudo, por necessidade interior que não desprezaram. O Vaticano é Fé, sem dúvida, mas vestida pelos homens e estes ... são de modas. As catacumbas significaram Fé sem roupagens, sem adornos. Nas suas galerias ainda se ouvem os cânticos dos crentes e o sussurro das suas orações. Cá em cima a igreja, cá em cima as basílicas, o Vaticano, mesmo, são verdades aproximadas da Verdade do subsolo de Roma.

Começa-se na "galeria" da Primeira Comunhão e quando o primo Joaquim nos leva ao Crisma já a vida nos começou a dizer outra coisas. É então que, por altura do casamento, se não há um padre Miguel a ajudar-nos, está tudo perdido - na aparência, pelo menos.

Cresce-se, estuda-se, vê-se, analisa-se e, um dia, algures na América do Norte, quando a nossa fé se acha entre o sim e o não, encontramos um padre que, do púlpito, assegura a Eternidade no Céu mas nada garante na Terra. E o nosso pensamento perde-se no Além, nos gozos antecipados da Vida Eterna. De qualquer modo, como é humano e não tem a virgindade dos Primeiros Cristãos, ocorrem-lhe os Bens Terrenos. Entre um Credo e um Padre Nosso, ouvida a Palavra, sai, então, uma pessoa da igreja. No íntimo, ressoa-lhe a ausência de garantias que, para esta vida, lhe recordou o paramentado cura. Benzidinha de fresco já se apresta para pôr o pé na rua quando um "enviado do púlpito" lhe anuncia com uma proposta de seguro de vida na mão:

- Meu irmão, garante a tua existência na Terra: faz já o teu seguro na ... (Henrique Mendes, da televisão, pois claro, se fosse vivo, poderia certificar. Ele que viveu lá onde as coisas aconteceram e eu o conheci pessoalmente...).

E a Fé surge cada vez mais barrenta e quase sem nenhuma relação com a profunda mensagem dos crentes do subsolo da Roma distante no tempo.

O Teodorico continua, assim, a ser lembrado sem que a titi tenha conseguido provar, como teria desejado, que foi descendente dos Primeiros Cristãos. O padre das apólices da Felicidade Terrena, esse sim, ainda é seu primo, quer, lá no Purgatório, queira quer não - atestam-no inequivocamente os registos."



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