quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Março 1973 - O meu testamento

Não me lembro em que circunstâncias, mas, quase exactamente, um ano antes do 25 de Abril, deu-me para escrever o "testamento" que hoje a trouxe para ler aqui, na ruadojardim...Encontrei-o onde não havia flores...


"(...) É pensando no que têm sido estes anos de sofrimento comum que vos desejo fazer, enquanto é tempo, o meu testamento, o testamento de um quarenta e tantos mil qualquer (número sindical?...) que viveu a vosso lado como foi capaz e que julga conhecer, pelo menos, uma parte dos vossos problemas.


Perdõem-me a modéstia do que consegui juntar pensando em vós. É realmente pouco mas é o fruto de muito trabalho, de muita canseira, de muita ilusão e de não menos desilusões. Tenho nas mãos, na cara, no coração, a marca destes anos de vida entre aquelas quatro paredes. O sistema nervoso sofreu não poucos desarranjos ao longo de anos. Quantas vezes, meu Deus, não terei eu cerrado os dentes para evitar dizer o que pensava... Quantos vexames... Quantos pensamentos loucos me terão assaltado sonhando com a evasão... Mas sempre a ideia da família se me atravessou no caminho. "Evasão? E a família? Com vai ficar a família?" - pensava.


Nunca foi possível. Talvez por cobardia, acredito. Afinal, em que circunstâncias piores teríamos ficado?


Cheguei a falar a alguns companheiros. A certa altura, esteve quase certa a saída. Juntámo-nos dois dos que, depois da nove da manhã, permanecíamos lado a lado e a coisa foi adiada por um triz... Contudo, receio puxa receio e lá continuámos. Combinámos, isto é, fomos chamados ao director e eu fui transferido para uma dependência do piso de cima.


Passámo-nos a encontrar apenas nos corredores de quando em vez e todos os dias à hora do almoço. Diluiram-nos assim aquela conjura permanente que nos mobilizava. Entretanto, ele já morreu vítima daquela  engrenagem, e eu cá estou não sei se mais morto do que vivo, mas, de qualquer modo, com força suficiente para fazer aquilo a que chamei "o meu testamento".


Ele aqui fica sem formalidades notariais, de que estou farto, sem impressões digitais, que às vezes exigem para garantir autenticidade, mas com a marca da verdade, a certeza de que procurarei não  enganar ninguém.


Assim:


1. INTRODUÇÃO


Destinam-se os bens constantes deste testamento a ser utilizados pelos companheiros que como eu sofram ou tenham sofrido os mesmos, ou idênticos, problemas;


2. DOS BENS À DISPOSIÇÃO


2.1 - Deixo-vos o azul do céu e sol radioso das manhãs de Primavera;


2.2 - Deixo-vos as estradas largas e em linha recta por onde circulam os homens que querem chegar depressa, se possível, antes de amanhã, ao seu destino;


2.3 - Deixo-vos um universo onde também há flores, onde o verde dos campos ainda não desapareceu para os homens que o querem ver, nem que para isso tenham que percorrer léguas e léguas;


2.4 - Deixo-vos as árvores do meu jardim que, apesar de tudo, continuam a crescer em direcção ao Sol, mas com as raízes bem entranhadas na Terra;


2.5 - Deixo-vos o alegre cantar dos pássaros para que possais compensar essa fadiga causada pelos ruídos que vos envolvem;


2.6 - Deixo-vos um sem número de janelas na esperança que um dia as possais abrir. E se alguma vez isso acontecer ao cair da tarde e lá ao longe virdes o espectáculo vermelho- laranja do Sol a pôr-se no horizonte, reparai bem que se tal colorido vos absorve é porque é efémero. Se lá estivesse a todo o instante acabaríeis por não lhe ligar. Voltai, pois, se possível, no dia seguinte à mesma hora e contemplai de novo;


2.7 - Deixo-vos as águas tranquilas dos lagos onde podereis ver reflectido o alegre sorriso das crianças;


2.8 - Deixo-vos os vales por onde também circulam os abastados e as montanhas em que os que o não são às vezes passam a olhar para baixo.


3. "BENS" A ABATER


3.1 - As roupagens velhas e negras que tenha usado;


3.2 -Os antiquados instrumentos de trabalho de que me servi durante estes anos;


3.3 - Os métodos complicados e estereotipados que me foram impostos;


3.4 - A intriga estúpida e mesquinha que senti à minha volta;


3.5 - A inveja dos incompetentes e o refúgio em que se abrigaram;


3.6 - A mentira seja a que título tenha sido;


3.7 - A meia-verdade não importa porquê;


3.8 - A falsa competência ou a competência palavrosa;


3.9 - As janelas sem vidros grandes dando para a rua;


3.10 - Os "vendedores de promessas" de que me fartei;


3.11 - O papel quadriculado de tão tenebrosas sugestões.


4. DOIS CONSELHOS


Permitam-me que este testamento não finalize sem que vos aconselhe a sorrir, a sorrir sempre mesmo quando não tiverdes janelas com vidros grandes na vossa sala. E, já agora, não permiti que o pânico tome conta de vós: há sempre um dia em que um homem consegue deixar de ser ... de ser um número..."


Lisboa, Março de 1973
Atº Ven. e Obg.º
M.A."








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