sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"A quarta idade" *

Para Artur Portela

"Da janela do "Jornal Novo", neste parapeito de Lisboa que é o Alto de Santa Catarina, vejo o Gigante Adamastor de costas e o  monumento a Cristo-Rei de frente. O Tejo está calmo e os barcos deslizam quase a desfazer a quietude das águas que, lá mais adiante, espelham a Ponte que o 25 de Abril adoptou.

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No Alto de Santa Catarina há um jardim. Nas tardes verdes da Primavera, quando o sol vem iluminar Lisboa, ponho-me, em momentos de pausa, a olhar os velhos e crianças que ali se juntam como que a unir o fim com o princípio.

A paisagem é quente, e bela, e serena, e propícia à meditação. Ali não chegam as vozes controversas de São Bento e apetece, por isso, reflectir, talvez mesmo de olhos fechados, depois de ter absorvido tudo o que ela proporciona.

Revejo, então, os velhos que no jardim cavaqueiam enquanto os netos correm até ao gradeamento que separa o Alto do casario que acaba por, em baixo, por emoldurar o Tejo.

Até mim não conseguem chegar as conversas que têm lugar a alguns metros da minha janela, mas julgo perceber pelos gestos que fazem e pelo que sei da velhice neste momento, neste País, que o tema central das suas falas é esta terrível e injusta vida portuguesa dos nossos dias que, nem por dizerem que aponta para um futuro melhor, tranquiliza quem a vive hoje. E os velhos só quase têm o dia de hoje para viver. Eles sabem que são membros da terceira idade, mas recusam-se, legitimamente, a pertencer à quarta idade - à idade dos fossilizados em vida.

Óleo de E.A. - 2ª idade...
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Lisboa que vejo do Alto de Santa Catarina é, mas não deveria ser, dissimulada. Parafraseando os paulistas quando se referem aos cariocas, lá em Terras de Santa Cruz, o Cristo-Rei, se alguma vez deixar de permanecer de braços abertos, deverá ser apenas para bater palmas por ter surpreendido os lisboetas, os portugueses do meu tempo, nessa coisa dura, velhaca, mas gloriosa - que é trabalhar.

Então, a quarta idade, será, graças a nós, apenas um pesadelo de uma tarde cinzenta neste Alto de Santa Catarina de cujo parapeito quero continuar a amar Lisboa."

1977

* Escrito, "na hora de serviço", e publicado ... não me lembro em que jornal...

6 comentários :

  1. Que belo,verdadeiro,amargo e doce texto.Muitos parabéns.

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  2. Caro Anónimo, muito e muito obrigado! Lembro-me perfeitamente de me ter "distraído" das minhas funções para...para o que se pode ler uns centímetros acima...

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  3. que, amável, Manuela Vaquero escreveu no Facebook: "Gostei demais! Abraço amigo."

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  4. que Luísa Barragon, generosa, escreveu no FACEBOOK: "não consigo colocar este texto no mural do Jornal Novo e merece lá estar."

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  5. Belo,verdadeiro,amargo e doce texto.Muitos parabéns

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  6. Querida Luísa, aqui para nós, foi escrito ("clandestinamente") no tempo em que eu "morava" no andar de cima... Razões acrescidas para te agradecer muito, mesmo muito, as tuas generosas palavras. Um abraço.

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