segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Canteiro de palavras LIX - Aquilino Cervantes - hoje!
No cinquentenário da morte de Aquilino Ribeiro, lembra-se aqui, ao ar livre, na ruadojardim, a sua tradução de D. Quixote de la Mancha, de Cervantes (se é que é preciso dizer quem o escreveu o original e, hoje, quem o traduziu para a lusa língua):
"(...) O tradutor não pode ser mais papista que o Papa. Contar de modo absoluto com a pureza de tal leitora de quinze primaveras ou o melindrado rubor de uma solteirona de cuia até aos pés, alma sorvada como os frutos que pendem dos ramos outoniços, seria uma concessão que ultrapassa os limites da arte mais bonecheirona. De resto que é para o leitor a atitude de pudicícia, provocada por uma palavra, não digo frase, senão uma aberração do espírito ou a hipocrisia de uma incrustação, pois que o estado de candura é inaperceptivo por natureza?!
O verbo não é obsceno em si, mas no panorama que entremostra. Quando no D. Quixote se trata de um lugar-comum como expressão de cólera, do desfrute ou da mofa: raios te partam! O diabo te leve! Ó filho de que te pariu sem conheceres o pai! e rosário de palavrões encerrados no patisquíssimo anexim, quem se queima alhos come, não há que atribuir-lhe sentido literal. Se o escritor exumasse, por exemplo, os termos escatológicos de que estão repletos os Cancioneiros, decerto teria cometido obra de pornografia. Vieram a Cervantes de envolta na linguagem corrente, como sucederá ao seu tradutor sendo probo. Praguejava como um granadeiro D. Quixote, vizinho de Argamasilha, e Sancho, bom rústico, que não lhe ficava atrás nesta condimentação do palavreado. Pragueja ainda hoje na Mancha e Campo de Montiel o homem que anda perto da natureza, e terão de praguejar correspondentemente aqueles figurantes do teatro cervantino que hajam de vestir burjaca e falar a nossa língua, tranladados para o teatro português. Não sendo assim seria emasculá-los. Traduzir um livro não consiste apenas em vertê-lo para termos equivalentes noutro idioma, como se lhes fosse congénito (...)"
- Senhor D. Quixote, deite-me a sua benção e dê-me licença que me despeça. Daqui mesmo quero voltar para a minha casa, onde me esperam mulher e filhos. Com eles, pelo menos, posso falar e discutir quanto me venha à cabeça. Nada, nada querer que ande por estes desertos de dia e de noite, feito pato mudo, e que não abra a boca quando me vier o apetite, é o mesmo que sepultar-me em vida. Se ainda a sorte permitisse que os animais falassem como no tempo de Isopete, vá, falava como um burro, falava com o primeiro bicho que encontrasse, e assim se iria passando o meu negro fado. É coisa por demais, que não se pode levar à paciência, andar a vida inteira à cata de aventuras e não receber senão pontapés, manteações, pedradas e sopapos por uma pá velha. Ainda por cima, ponto na boca, sem licença para desatar o saco, como se um homem tivesse nascido mudinho! Não!
- Já te percebo, Sancho - respondeu-lhe D. Quixote. - Rebentas se te não tirar o barbilho que te pus. Pois considera-o tirado, e fala à vontade. Mas com uma condição: a licença acaba logo que ponhamos pé para fora destas serras..."
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