sábado, 11 de dezembro de 2010

Afagos do abecedário ( III )

Pisa, 1926 - Carta (longa, mas...) de Teixeira Gomes a João de Barros


"Meu caro amigo


Para que não julgue que o esqueci, daqui lhe envio - deste assás risonho exílio - com as melhores lembranças, uma leves considerações, fundamentais do nosso futuro económico, que sujeito à sua judiciosa apreciação.


- Não tem sido inteiramente perdido o meu tempo, mesmo nestes ócios de viajante sem destino, no que respeita ao bem da Pátria.Tenho reflectido muito e muito, sobre o que se poderia fazer em seu benefício, sem lançar mão de recursos que não sejam exclusivamente seus, e se tornar à Presidência, levarei já um plano organizado de reformas financeiras, próprias a levantar a Nação do marasmo em que ora jaz. Ao mesmo tempo vou observando, com ciosa curiosidade, tudo quanto nos países que visito pode ser objecto de proveitosa aplicação ao nosso. Não sou daqueles que mofam dos exemplos estrangeiros, e os desprezam, pelo contrário; procuro inspirar-me neles, e, nas medidas do possível, enquadrá-los nas nossas condições de vida social, religiosa e política. E logo aqui, no baptistério de Pisa, que fecunda lição na forma, no modo admirável como os poderes públicos utilizam o seu notável eco, e o respeito que lhe prestam!

Para não acordar inutilmente o eco, é proibido aos visitantes levantar a voz além do diapasão ordinário, e isso inspira uma espécie de terror supersticioso, que faz com que ali toda a gente ande em bicos dos pés. Ali, só mexe no eco o delegado do Governo,imponente com farda de generalíssimo e muitíssimas condecorações.

Para jogar com o eco o delegado dispõe de espectadores em mudos semi-círculos, e avisados de que não devem tugir nem mugir, começa a emitir sons, já pelo nariz, já pela boca (e alguns bem estranhos parecem!) com tal arte, que desencadeia nos recessos do templo pequenas trovoadas, levanta fundos suspiros e gemidos amorosos, combina harmonias de órgão, sem contar uma infinita e miúda musicata, que vai das agudezas do pífaro aos rugidos do fagote.

E que se atreva alguém a infrigir a severa disciplina que preside as estas audições! Eu vi uma boa senhora inglesa, idosa e surda (desse género que usa grandes chapéus de palha com jardim à frente) que estava pedindo explicações arquitectónicas, à companheira, por uma corneta acústica, vi-a quase arrastada pelas lages, e expulsa com tal violência, que ficou no terreiro, assentada sobre o chapéu, cujas flores se lhe esparziam em redor, e brandindo a corneta direito ao céu,com tão patética expressão, que inspirava dó.

(...) Está o meu amigo, com a sua provada perspicácia, a calcular o que semelhante eco pode render, em bilhetes de entrada, senhas de uso pessoal, espórtulas, etc.

Ora trata-se aqui de um simples eco artificial. Agora pense no nosso país, tão rico de ecos naturais, alguns capazes de repetirem, abandonados a si mesmos, cantos inteiros dos "Lusíadas", outros singulares, únicos, como o da Serra do Cabril, que se lhe dá as boas noites antes de ir para a cama, e no dia seguinte ele responde-nos com bons dias.

E anda a riqueza imensa ao desbarato, dela usando, e abusando, a seu bel-prazer, gratuitamente, até aos próprios e tradicionais inimigos de Portugal: os espanhóis!

Entra no meu plano de reformas financeiras, criar uma grande repartição - e porventura até um ministério especial, para administrar, explorar e utilisar os ecos pátrios. Como estes existem, no nosso abandonado país, muitos outros ramos de indústria a desenvolver, dos quais, nem nas regiões oficiais nem nas privada se cuida.

(...) E isto na presente época, de tanta inventiva e pesquisação científicas, que até a força de tracção dos caracóis e caracoletas (sobretudo estas) está prestes a entrar no grande concurso progressivo da felicidade humana.

Devo, porém, dizer-lhe que ainda não tenho este capítulo (...) suficientemente estudado e desenvolvido, mas desde já se me oferece observar-lhe que nenhuma relação oferece com o projecto daquele meu célebre ministro das Finanças, que para equilibrar o orçamento, se propunha vender o ar atmosférico aos pais das famílias, servindo-se para ese fim de contadores de xareta que lhe colocava nas portas e janelas.

(...) Mas não só de pão vive o homem, e no meu plano de reformas atende-se, quanto possível, à parte espiritual da vida portuguesa, e sempre de modo a não sobrecarregar o orçamento.

Na grande organização das festas nacionais entrarão, como elemento oficial, os fenómenos meterológicos e celestes.Teremos assim, por exemplo, na época própria, a função das estrelas cadentes. É pena que a nossa situação geográfica não permita utilisar as auroras boreais, pois são raríssimas e incertas. É pena!imagine o que seria uma aurora boreal num cortejo cívico, para celebrar a separação da Igreja do Estado.

(...) Depois, o eclipse, quer seja do sol ou da lua, é um fenómeno muito simpático, popular, chegando sempre a horas fixas, e dócil como nenhum outro.A minha ideia é meter definitivamente os eclipses nas festas nacionais (...).

Não haverá discursos, e os vidros fumados (monopólio da Tesouraria, sendo o produto da sua venda destinado a custear os gastos dos festejos) serão distribuídos gratuitamente aos membros do Corpo Diplomático.

Na província e colónias (onde à falta do fenómeno genuíno se fará dele um simulacro pintado) os delegados do Governo presidiriam às festas (...). Durante o eclipse, os inimigos das Instituições receberiam uma dose de marmeleiro, aplicada "ad libitum" por amadores esforçados, conscienciosos e diligentes. Enfim a sessão eclipsal seria levantada a hora precisa, e ao som da Portuguesa, executada respeitosamente por uma assistência, de pé e olho nú."

Teixeira Gomes foi Presidente da República entre 1923 e 1925. Em 28 de Maio de 26, aconteceu o que se sabe...

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