sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Esboceto

Não sei se a Chuva Miudinha que, durante um década, "caiu" em Coimbra, alguma vez molhou alguém, mas...

Mas... 21 de Maio de 1989 (se tiver alguma actualidade, digam-me, por favor...):

"Tema, sério e actual, a pedir chuva e, porque não?, ensaio de grande fôlego: como nascem, hoje, as guerras entre os povos. Afastado o eventual ridículo desta pública reflexão acerca de assunto tão multifacetado e importante, excluam-se, por excessivamente complexas para o pequeno espaço de uma crónica (...), as determinantes sociopolíticas existentes à partida no país berço do potencial candidato à revolta - futura e adulta (na idade). Dos múltiplos possíveis, crie-se um cenário.

Aproximemo-nos da célula-base e observemos, ainda que a traços muito largos, a família do cidadão da "história" breve. Imaginemos o dito "candidato", apesar de tudo, de preferência num clima físico de temperatura a roçar o tórrido, ou tão húmido que esbodegante: filho de pais com pouco saber, em cujo lar a harmonia conjugal nunca, ou quase nunca, fez parte do quotidiano;

nascido de uma ligação falhada, num ambiente de telha-vã, super-habitado, quente de sexo, mas privado da verdadeira generosidade afectiva, onde as carências alimentares e outras, se revelaram o pão de cada dia;

criado no desinteresse pelas coisas da instrução, num meio de que os valores morais sempre estiveram ausentes; edifício sem alicerces, seguido à margem da palavra autorizada de uns pais que se desejariam conhecedores e atentos;

a escola, desde a idade que era devida, não lhe foi, naturalmente, tornada uma necessidade;

faltou uma vez, faltou duas, faltou três, uma dúzia - chumbou;

disse que queria trabalhar, mentiu e descobriu o fumo, descobriu os fumos, que os pais não souberam prevenir, nem lhes criaram, a eles próprios, condições para ver e evitar;

ignorou, dia sim, dia não, as obrigações sociais que a convivência impõe;

tentou observar o que se passava à sua roda, olhou para progenitores desgarrados, ou mesmo fisicamente separados, queria ser gente, mas ninguém lhe soube responder;

em dado momento, lembraram-lhe que tinha que ser soldado e, quiçá, ir para a guerra;

assaltaram-no, então, ideias de fuga de uma pátria que não aprendera a sentir, cobiçou o "alheio", viveu na noite;

teve problemas de saúde, por erros de uma maternidade e paternidade inconscientes.


Tem fome. Fome de tudo. E não sabe porquê. Isola-se. Acusa. Desata a confundir o bem com o mal. Mina-o um bicho a que os demais apelidam de angústia. Despreza os seus semelhantes. Sem saber como, engendra filhos a qualquer esquina. Tomba, levanta-se. Tomba, tomba, tomba. Aceita vestir-se de mercenário. Quer lutar - porque está revoltado, incapaz de, para tanto, descortinar razões. Pega numa arma. Acha tudo natural. Matar? "O quê, está errado?..."Morre. Novo. Deixa filhos - como ele. Filhos que se multiplicam num espaço físico com fronteiras aramadas.

O povo, menino, anda por lá, esfomeado, sem escudo interior que lhe valha, a brincar com espingardas de pau, enquanto uns senhores, bem nutridos, em gabinetes à prova de bala, ali mesmo ao lado, discutem ideologias e analisam as últimas violações dos Direitos do Homem.

Mais tarde, produzem-se páginas negras e páginas brancas. Elaboram-se as estatísticas, compilam-se números, alinham-se nomes: por exemplo: "morreu fulano, filho de pai incógnito e de...". Escrevem-se romances. Falta (re) começar. Pelos livros de poesia que falam de todas as espécies de pão - e, portanto, também da Branca de Neve e os Sete Anões, também do sonho."

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