Lembro-me de Natércia Freire nos corredores do "Diário de Notícias" ou a entrar para o gabinete de Augusto de Castro, de quem se sabia ser amiga do peito. Tenho aqui à mão, publicado no número 3 da revista Colóquio, da Gulbenkian, um poema seu que partilho com os que hoje vierem aproveitar comigo este sol do Tempo que existe ...
O Tempo não existe. O Tempo é uma ilusão.
A virgem Primavera que vem sempre em Janeiro
e que encontra o teu corpo escondido no caixão
e os fios do teu mundo na luz do mundo inteiro,
anda a jogar comigo os dias misteriosos
de uma infância de véus e névoas sussurantes.
O Tempo não existe. Ontem brincámos juntas
como duas irmãs. As palavras
que a Morte sagra, nunca mais as digo!
Vamos voar lezírias
em renovo; amar, à transparência,
o teu súbito povo.
Chorar, nas velhas casas de poeira,
o abandono de amor de outras mulheres,
tal como tu
choraste em muitas Primaveras,
muitos Verões, muitos Invernos de água
o leito nu.
O Tempo não existe. E a nossa Primavera
não nos pode mentir. Tu irrompes do espaço
como uma flor aérea.
O teu corpo floresce de uma alva lembrança.
Tuas pernas, teus braços, teus seios, tuas mãos,
teu grande coração de mãe - sem fim,
inundam-me este Tempo sem estação ...
Mãe! Vamos sorrir dos homens como dantes!
Das suas guerras torpes, dos seus pavores de vermes.
Rir à nossa pobreza onde abrias clareiras
e diamantes verdes,
como os teus olhos verdes!
Vamos ser orgulhosas de tanto amor
aos bens que ninguém quis:
A noite, a solidão, os mortos, as florestas,
de um Tempo sem país ...
Oh, as largas janelas
fechadas da tua alma! Tua garganta
muda! Os gestos de algodão
rolando as minhas noites de gemidos.
Tinha um braço na Infância.
Tinha outro na Morte.
E agora? Vou no Tempo.
Os braços vão caídos.
Que o Tempo não existe. Ontem
brincámos juntas,
- Oh, minha mãe - criança! -
como duas Irmãs, como duas defuntas.
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