quinta-feira, 16 de junho de 2011

"O POETA" - livro a haver (X)

Um salto, um salto de dezenas de páginas nos salpicos de prosanove ) aqui deixados até agora deste "livro a haver":

"(...) O Cais do Sodré transformara-se, com o correr dos anos, em ponto de encontro de gentes de todas as nações e os seus cafés, "ainda inferiores aos de Paris", continuavam a proliferar. "Os negócios, a política e, por certo, a vida mundana, tiveram ali o grande saguão onde em Lisboa tudo se despejava". Foi neste local que, ao que dizem, se estabeleceu M.me Júlia com uma hospedaria que ganhou justa "fama de bem servir" e até de ter acolhido o sobrinho do rei da Dinamarca.

Lisboa da beira-Tejo, fora de muralhas de outros séculos, consolidava-se edificando aqui uma casa de pasto, ali um hotel, mais adiante um café e, sem ninguém dar por isso, a breve trecho, na zona entre as Duas Igrejas e o Cais do Sodré, o centro de tudo, o apeadeiro da Europa e talvez do mundo.

Companheiros de Bocage e de Tolentino por lá andaram envolvidos em cavaqueira amena com turcos e cristãos e às voltas com a cabeça de porco com hortaliça, que devia cheirar que era um regalo; Garrett, pelo seu lado, chegou a instalar-se mais tarde no largo Barão de Quintela a escrever as Viagens enquanto, por certo, lhe entravam pelas janelas os odores do chouriço de sangue e do chispe bem temperado da nossa terra.

Diz-se que Machado de Castro também teve oficina onde hoje está o que resta do Hotel Bragança de outros tempos. Há ainda quem imagine Liszt a encaminhar-se do Hotel de France, no Cais do Sodré, para o S. Carlos e consiga ouvir, ecoando em toda aquela vasta área, do Chiado à Ribeira, os sons do Galope cromático que ele tocou, ante uma Lisboa amante de bom toucinho entremeado, mas também de pianistas de génio, de ramboiadas e de elegância, de sécias e peraltas, de bigodaças e bengalas. Eça nascera na hora própria. Ele e mais dez vencidos da vida. Depois, depois ficou o Tejo, o declive da rua do Alecrim, o piso axadrezado do Bragança e uma boémia cada vez mais oculta no quadriculado das ruas da borda d'água.

Isidro para lá fora morar, anos mais tarde, sem quase se dar conta. A única coisa de que se lembrava vagamente é de que, ainda menino, se deixara impressionar por aquela polida Gardunha de Lisboa. Na verdade, sentia-se como que empurrado para tão formosa aba da cidade, por qualquer movimento que não entendia. Contudo, talvez fosse o Tejo que desde sempre o havia atraído, ou, quiçá, as noites que ali eram ópio; ou ainda um impulso vindo das profundezas da alma, onde Liszt sempre tocara baixinho e Lisboa rira de si própria, sem cheta no bolso, mas transbordante de ideais."

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