domingo, 12 de junho de 2011

"O POETA" - livro a haver ( VIII )

"(...) D. Rosa Soares Lobo, alta, trazeiro redondo, bem servida de peito, seca de cara, conservava, apesar dos seus trinta e oito anos, o mesmo porte saudável e trigueiro com que, antes de trabalhar para Lisboa, aos quinze, saíra da aldeia, num dos poucos gestos migratórios que então se conheciam na terra.


Dos vinte e quatro aos vinte sete vivera maritalmente com o sr. Lemos Bacelar, em casa de quem havia servido desde que chegara à capital, e que, entretanto, ficara viúvo, com cinquenta e seis anos. É assim que D. Rosa, incansável desde menina em casa dos Bacelar, encontra, em plena pujança da vida, o alto arrimo que, para a sua origem humilde, representava a comunhão marital com um prestigiado tesoureiro de finanças de Lisboa (o sr. Bacelar também tocava piano) com quem desde sempre simpatizara, mas até então, só dois ou três anos antes do falecimento da patroa, a boa senhora D. Estefânia Fialho, tivera relações íntimas e furtivas.


D. Rosa Lobo, enterrada D.Estefânia, viu, pela primeira vez, aos vinte e quatro anos, a hipótese de triunfar na vida por outro caminho que não o das suas conterrâneas, simples mulheres de farrapeiros. Quando o sr. Lemos Bacelar, tísico, se finou, tinha, exactamente, cinquenta e nove outonos. Há quem diga que os melhores anos da sua vida foram os últimos dois ou três, ainda que os filhos das primeiras núpcias nunca tenham visto com bons olhos a ligação do pai. O certo é que Rosa Soares Lobo, ultrapassada a fase em que as más línguas a consideravam a principal causadora da morte de D.Estefânia Fialho, vivia agora em permanente homenagem ao que, afinal, fora o seu único amor na vida. Lemos Bacelar, aliás, tivera tempo para compreender e, um pouco à revelia dos filhos, tudo fizera para dar a D. Rosa Lobo o bem-estar e a posição que estavam ao seu alcance, como homem e como tesoureiro de finanças respeitado. Infelizmente para os seus desejos, além do piano, mais não lhe conseguira deixar do que uma casa alugada para viver, ali para as bandas do Poço dos Negros, onde passou a morar, e ainda mora, rodeada de antiquadas tabelas fiscais, a sua amada, D. Rosa Soares Lobo, orgulhosa de um passado curto mas catita.

O corpo, que, inocente mas arrebatadamente, de certo modo, levara à tumba Lemos Bacelar, ganhara com a ligação, em pouco tempo, a expressão adulta que, encoberta, trouxera, do Dominguizo, aos quinze anos (...)."

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