HOMENAGEM PÓSTUMA
ENTREVISTA com Monsenhor Manuel Teixeira
Monsenhor Manuel Teixeira, fale-me um pouco de si... Do percurso nesta terra que adoptou. Sei que é um homem de Freixo de Espada à Cinta...
Vim de Freixo de Espada à Cinta com um grupo de rapazes que pretendia tirar o curso sacerdotal, eclesiástico, que, aqui, em 1924, era gratuito: dormida, alimentação e estudos. Desses seis rapazes, só eu estou vivo e um outro que saiu quando era seminarista. Não se ordenou. Era sobrinho do almirante Sarmento Rodrigues. Chamava-se Eduardo Augusto Massa. Esse rapaz sentiu grandes dificuldades durante o curso e teve que deixar o seminário. Depois foi para Timor como missionário leigo, lá casou, teve filhos e hoje está em Lisboa, corcunda.
Os outros foram assassinados pelos japoneses. Dois em Timor, outro morreu na cadeia em Singapura, preso e torturado. E o outro deixou de ser padre, casou-se pela igreja e morreu também. De maneira que sou o único abencerragem desse grupo que há 71 anos veio de Freixo de Espada à Cinta.
Tenho passado a vida em Macau, com excepção de 15 anos em Singapura, que foram os mais belos de toda a minha vida. Até lhe chamo a minha lua de mel... Na verdade, Singapura tem uma comunidade portuguesa de milhares de pessoas que são todas católicas, pessoas de comunhão, com um respeito infinito pelos padres. Padre é para eles o patriarca antigo que resolve todas as questões, sem que seja preciso ir a tribunal...
É uma terra abençoada. Ali passei 15 anos. O resto foi tudo em Macau.
Quando eu vim para cá, eramos uma espécie de aldeia portuguesa. Todos nos conhecíamos. Umas 150 000 pessoas, mas afastados, separados da parte chinesa. A parte chinesa era a de S. Lázaro; a parte portuguesa, da avenida Almeida Ribeiro até à Barra. Ainda hoje esteve aqui comigo o Dr. João Filipe, que é filho do grande romancista Joaquim Paço d'Arcos, e eu estive a recordar esses tempos do autor de Ana Paula e doutros romances. Há uns dez anos veio cá também a viúva do Joaquim Paço d'Arcos, que é a Maria da Graça, e andei a mostrar-lhe Macau. Mostrei-lhe os locais todos por onde seu marido andou e ela ficou encantada.
E como o Joaquim Paço d'Arcos casou duas vezes, a primeira com a Maria Cândida, filha do almirante Magalhães Correia, mostrei-lhe também o local onde ele namorou essa primeira mulher. Ela gostou, evidentemente. Disse-o ao filho.
De maneira que conheci esta gente toda em Macau, que era uma aldeola em que a comunidade portuguesa vivia à parte da comunidade chinesa. E é curioso saber que havia apenas uma loja portuguesa: um bar...
Estamos no ano...
Estamos em 1924. Havia, como disse, apenas um bar, era o Bar do Ananias, na rua do Campo. Tínhamos também o Banco Nacional Ultramarino, que foi fundado em 1903 e esse continuou, mas, já no meu tempo, foram construídas novas instalações na avenida Almeida Ribeiro. O resto estava tudo nas mãos dos chineses. E estavam satisfeitos. Os portugueses não trabalhavam senão nas repartições, eram funcionários públicos. Os chineses trabalhavam muito, como trabalham hoje, e os portugueses, satisfeitíssimos da vida, compravam tudo aos chineses, que tinham todas as lojas nas mãos. Os chineses gozavam imenso com isso porque vendiam os seus produtos. Havia uma satisfação geral. Nunca houve distúrbios nenhuns durante esse tempo.
E as guerras na Europa e aqui?...
Para além da guerra na Europa, em 1941, começou em 1937, aqui,uma guerra porque os japoneses invadiram a China e começaram os bombardeamentos que atingiram a província de Cantão. Então houve meio milhão de chineses que se refugiaram em Macau. Não havia, evidentemente, comida para ninguém, o governo português racionou a comida para os portugueses, o governo inglês pagava aos súbditos um subsídio para alimentação e...e os chineses que se arranjassem porque era impossível sustentar meio milhão de pessoas...Não havia recursos para isso. Resultado: morriam, diariamente, 100 chineses de pura inanição. Sentavam-se na rua, vinha o frio (Macau, no Inverno, é muito frio) e ali ficavam enregelados, sem se saber se estavam vivos ou mortos... De manhã, vinham os carros da polícia e do Leal Senado para transportar os cadáveres, supostos cadáveres, para a Taipa. Metiam-nos em grandes camiões, levavam-nos ao porto, atiravam-nos para umas barcaças que os levavam então para, como disse, a Taipa.
Durante o trajecto, nascia o sol que aquecia aqueles corpos que, nalguns casos, começavam a mexer-se... Não estavam mortos. Quando chegavam à Taipa, abria-se uma trincheira na praia e atiravam os cadáveres para lá. Com o choque que sentiam, alguns mexiam-se, mas estavam lá os soldados landins (havia aqui muitos soldados de África) e então diziam: "então, comandante, você está morto e está a mexer-se?... Não pode ser..." E cobriam tudo com areia. O pároco da Taipa, monsenhor António André Gan, confirmou-me a situação...
Depois, outra coisa: como não havia comer, alguns hotéis (por exemplo, o Hotel Central) compravam crianças, cozinhavam-nas e davam-nas a comer aos clientes. Eu tinha um grande amigo, e meu paroquiano (eu era pároco de S. Lourenço), o Dr. Juiz Evaristo Mascarenhas, que me confessou ter ido a um desses restaurantes e lhe terem proposto uma refeição de carne humana. "Muito saborosa", segundo o próprio juiz. A fome é má conselheira...
Meu caro Monsenhor...
Eu próprio, um dia, quando voltava da Ilha Verde, chamei um barco - os chineses chamam-lhe Tan-Ká, barco de família, e o Tan-Ká recusou-se... Então, eu berrei, dizendo que pagava... Por fim, ele veio à praia e quando entrei na barcaça verifiquei que estava cheia de cadáveres com um círculo vermelho à volta do peito. Que significava isso? Significava que tinham tirado os pulmões, o coração, as entranhas dessa gente toda para cozinhar... E agora levavam os restos mortais, sem entranhas, a enterrar.
Aqui no Hospital de S. Januário, onde agora estamos * vinha todas as manhãs um homem buscar as crianças que morriam...
É claro que isso não foi publicado, por que, se alguém publicasse, a polícia intervinha de imediato e prendia os donos dos hotéis. Eram rumores que circulavam por toda a parte, mas não se podiam publicar nos jornais. Mas toda agente sabia. De maneira que, quando, há uns meses, eu escrevi isso num jornal local, um inglês de Hong Kong, que se diz historiador (afirmou-se mesmo investigador histórico), referiu-me "nunca ter visto isso em parte nenhuma..." É evidente que ele nunca poderia ter visto isso escrito, porque isso nunca se escreveu durante a guerra, visto que a polícia prenderia qualquer suspeito, qualquer pessoa incriminada nesse negócio. Mas eu presenciei pessoalmente e muita gente ainda viva veio a dizer que é verdade aquilo que eu escrevi. Essa historietazita correu o mundo inteiro e foi até publicada nos países árabes. Recebi mesmo um recorte desses países em que vinha essa história das crianças cozinhadas durante a Guerra.
Esse tempo foi o pior da história de Macau, de quatrocentos anos.
E porque é que os chineses vinham para Macau? Bem, eles preferiam morrer de fome, a morrer debaixo das bombas. Era tudo bombardeado. Os japoneses bombardeavam a China do Sul e eles pensavam então que melhor seria morrerem sem bombas e vinham para Macau e aqui encontravam um lugar onde poderiam ficar... Mas era impossível sustentar essa gente... Foram tempos terríveis, todos julgavam que era o fim de Macau, como agora que está tudo com medo de 1999 e o que acontecerá depois...
Bom, já aconteceu durante a Guerra. Mas nunca os japoneses ocuparam Macau, nunca... É que tivemos sempre o nosso governador, que era o Gabriel Teixeira, as nossas autoridades, a nossa polícia. Nunca os japoneses ocuparam Macau. E Macau foi o centro de refúgio para todos os foragidos da tormenta: eram alemães, eram ingleses, eram franceses. De Hong Kong, de Xangai, de Cantão. Veio gente de toda a parte acolher-se a Macau, porque as suas terras estavam ocupadas pelos japoneses e não se podia viver. Foi um tempo terrível, esse.
.../...
* Monsenhor Manuel Teixeira, a certa altura, terá adoecido e passado como que a "residir" no hospital, onde meu deu a longa entrevista que aí há-de ir aparecendo - para, a seguir, dar lugar a outras que, hoje, no seu conjunto, ajudam a fazer História.
Será uma longa tarefa que irei deixando sair sem medo de eventuais falsos editores - que, se aparecerem, alguém há-de acabar por denunciar. Fica dito.
Até breve!
ENTREVISTA com Monsenhor Manuel Teixeira
Monsenhor Manuel Teixeira, fale-me um pouco de si... Do percurso nesta terra que adoptou. Sei que é um homem de Freixo de Espada à Cinta...
Vim de Freixo de Espada à Cinta com um grupo de rapazes que pretendia tirar o curso sacerdotal, eclesiástico, que, aqui, em 1924, era gratuito: dormida, alimentação e estudos. Desses seis rapazes, só eu estou vivo e um outro que saiu quando era seminarista. Não se ordenou. Era sobrinho do almirante Sarmento Rodrigues. Chamava-se Eduardo Augusto Massa. Esse rapaz sentiu grandes dificuldades durante o curso e teve que deixar o seminário. Depois foi para Timor como missionário leigo, lá casou, teve filhos e hoje está em Lisboa, corcunda.
Os outros foram assassinados pelos japoneses. Dois em Timor, outro morreu na cadeia em Singapura, preso e torturado. E o outro deixou de ser padre, casou-se pela igreja e morreu também. De maneira que sou o único abencerragem desse grupo que há 71 anos veio de Freixo de Espada à Cinta.
Tenho passado a vida em Macau, com excepção de 15 anos em Singapura, que foram os mais belos de toda a minha vida. Até lhe chamo a minha lua de mel... Na verdade, Singapura tem uma comunidade portuguesa de milhares de pessoas que são todas católicas, pessoas de comunhão, com um respeito infinito pelos padres. Padre é para eles o patriarca antigo que resolve todas as questões, sem que seja preciso ir a tribunal...
É uma terra abençoada. Ali passei 15 anos. O resto foi tudo em Macau.
Quando eu vim para cá, eramos uma espécie de aldeia portuguesa. Todos nos conhecíamos. Umas 150 000 pessoas, mas afastados, separados da parte chinesa. A parte chinesa era a de S. Lázaro; a parte portuguesa, da avenida Almeida Ribeiro até à Barra. Ainda hoje esteve aqui comigo o Dr. João Filipe, que é filho do grande romancista Joaquim Paço d'Arcos, e eu estive a recordar esses tempos do autor de Ana Paula e doutros romances. Há uns dez anos veio cá também a viúva do Joaquim Paço d'Arcos, que é a Maria da Graça, e andei a mostrar-lhe Macau. Mostrei-lhe os locais todos por onde seu marido andou e ela ficou encantada.
E como o Joaquim Paço d'Arcos casou duas vezes, a primeira com a Maria Cândida, filha do almirante Magalhães Correia, mostrei-lhe também o local onde ele namorou essa primeira mulher. Ela gostou, evidentemente. Disse-o ao filho.
De maneira que conheci esta gente toda em Macau, que era uma aldeola em que a comunidade portuguesa vivia à parte da comunidade chinesa. E é curioso saber que havia apenas uma loja portuguesa: um bar...
Estamos no ano...
Estamos em 1924. Havia, como disse, apenas um bar, era o Bar do Ananias, na rua do Campo. Tínhamos também o Banco Nacional Ultramarino, que foi fundado em 1903 e esse continuou, mas, já no meu tempo, foram construídas novas instalações na avenida Almeida Ribeiro. O resto estava tudo nas mãos dos chineses. E estavam satisfeitos. Os portugueses não trabalhavam senão nas repartições, eram funcionários públicos. Os chineses trabalhavam muito, como trabalham hoje, e os portugueses, satisfeitíssimos da vida, compravam tudo aos chineses, que tinham todas as lojas nas mãos. Os chineses gozavam imenso com isso porque vendiam os seus produtos. Havia uma satisfação geral. Nunca houve distúrbios nenhuns durante esse tempo.
E as guerras na Europa e aqui?...
Para além da guerra na Europa, em 1941, começou em 1937, aqui,uma guerra porque os japoneses invadiram a China e começaram os bombardeamentos que atingiram a província de Cantão. Então houve meio milhão de chineses que se refugiaram em Macau. Não havia, evidentemente, comida para ninguém, o governo português racionou a comida para os portugueses, o governo inglês pagava aos súbditos um subsídio para alimentação e...e os chineses que se arranjassem porque era impossível sustentar meio milhão de pessoas...Não havia recursos para isso. Resultado: morriam, diariamente, 100 chineses de pura inanição. Sentavam-se na rua, vinha o frio (Macau, no Inverno, é muito frio) e ali ficavam enregelados, sem se saber se estavam vivos ou mortos... De manhã, vinham os carros da polícia e do Leal Senado para transportar os cadáveres, supostos cadáveres, para a Taipa. Metiam-nos em grandes camiões, levavam-nos ao porto, atiravam-nos para umas barcaças que os levavam então para, como disse, a Taipa.
Durante o trajecto, nascia o sol que aquecia aqueles corpos que, nalguns casos, começavam a mexer-se... Não estavam mortos. Quando chegavam à Taipa, abria-se uma trincheira na praia e atiravam os cadáveres para lá. Com o choque que sentiam, alguns mexiam-se, mas estavam lá os soldados landins (havia aqui muitos soldados de África) e então diziam: "então, comandante, você está morto e está a mexer-se?... Não pode ser..." E cobriam tudo com areia. O pároco da Taipa, monsenhor António André Gan, confirmou-me a situação...
Depois, outra coisa: como não havia comer, alguns hotéis (por exemplo, o Hotel Central) compravam crianças, cozinhavam-nas e davam-nas a comer aos clientes. Eu tinha um grande amigo, e meu paroquiano (eu era pároco de S. Lourenço), o Dr. Juiz Evaristo Mascarenhas, que me confessou ter ido a um desses restaurantes e lhe terem proposto uma refeição de carne humana. "Muito saborosa", segundo o próprio juiz. A fome é má conselheira...
Meu caro Monsenhor...
Eu próprio, um dia, quando voltava da Ilha Verde, chamei um barco - os chineses chamam-lhe Tan-Ká, barco de família, e o Tan-Ká recusou-se... Então, eu berrei, dizendo que pagava... Por fim, ele veio à praia e quando entrei na barcaça verifiquei que estava cheia de cadáveres com um círculo vermelho à volta do peito. Que significava isso? Significava que tinham tirado os pulmões, o coração, as entranhas dessa gente toda para cozinhar... E agora levavam os restos mortais, sem entranhas, a enterrar.
Aqui no Hospital de S. Januário, onde agora estamos * vinha todas as manhãs um homem buscar as crianças que morriam...
É claro que isso não foi publicado, por que, se alguém publicasse, a polícia intervinha de imediato e prendia os donos dos hotéis. Eram rumores que circulavam por toda a parte, mas não se podiam publicar nos jornais. Mas toda agente sabia. De maneira que, quando, há uns meses, eu escrevi isso num jornal local, um inglês de Hong Kong, que se diz historiador (afirmou-se mesmo investigador histórico), referiu-me "nunca ter visto isso em parte nenhuma..." É evidente que ele nunca poderia ter visto isso escrito, porque isso nunca se escreveu durante a guerra, visto que a polícia prenderia qualquer suspeito, qualquer pessoa incriminada nesse negócio. Mas eu presenciei pessoalmente e muita gente ainda viva veio a dizer que é verdade aquilo que eu escrevi. Essa historietazita correu o mundo inteiro e foi até publicada nos países árabes. Recebi mesmo um recorte desses países em que vinha essa história das crianças cozinhadas durante a Guerra.
Esse tempo foi o pior da história de Macau, de quatrocentos anos.
E porque é que os chineses vinham para Macau? Bem, eles preferiam morrer de fome, a morrer debaixo das bombas. Era tudo bombardeado. Os japoneses bombardeavam a China do Sul e eles pensavam então que melhor seria morrerem sem bombas e vinham para Macau e aqui encontravam um lugar onde poderiam ficar... Mas era impossível sustentar essa gente... Foram tempos terríveis, todos julgavam que era o fim de Macau, como agora que está tudo com medo de 1999 e o que acontecerá depois...
Bom, já aconteceu durante a Guerra. Mas nunca os japoneses ocuparam Macau, nunca... É que tivemos sempre o nosso governador, que era o Gabriel Teixeira, as nossas autoridades, a nossa polícia. Nunca os japoneses ocuparam Macau. E Macau foi o centro de refúgio para todos os foragidos da tormenta: eram alemães, eram ingleses, eram franceses. De Hong Kong, de Xangai, de Cantão. Veio gente de toda a parte acolher-se a Macau, porque as suas terras estavam ocupadas pelos japoneses e não se podia viver. Foi um tempo terrível, esse.
.../...
* Monsenhor Manuel Teixeira, a certa altura, terá adoecido e passado como que a "residir" no hospital, onde meu deu a longa entrevista que aí há-de ir aparecendo - para, a seguir, dar lugar a outras que, hoje, no seu conjunto, ajudam a fazer História.
Será uma longa tarefa que irei deixando sair sem medo de eventuais falsos editores - que, se aparecerem, alguém há-de acabar por denunciar. Fica dito.
Até breve!
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