domingo, 3 de maio de 2015

MACAU: "Na China as pessoas têm medo de falar"




                                                by Ponto Final
António Katchi aponta as responsabilidades pela mono indústria local tanto ao Governo de Macau, como a Pequim, decorrendo daí, na sua opinião, a responsabilidade de garantir à população o pleno emprego. Para o jurista, o novo elenco governativo não é sinónimo de novidades nas orientações políticas, desenhadas para proteger a “oligarquia local”, com o beneplácito do Governo Central. A educação patriótica, por exemplo, é um “péssimo sinal” para o futuro.
Sandra Lobo Pimentel
- Temos um Governo que entrou em funções recentemente, com algumas novidades e ideias para o futuro. O que pensa desse futuro?
António Katchi – Antes de mais, não concordo com a observação de que temos um Governo novo. Acho que temos um Governo velho e recauchutado. Ou seja, temos um Chefe do Executivo, que é quem define as políticas sob a orientação de Pequim, que é o mesmo. Temos o mesmo regime político que não dá espaço para um Governo diferente com políticas significativamente diferentes e temos o mesmo regime chinês com a mesma orientação política para Macau, que é de defesa dos interesses da oligarquia local e também do capital estrangeiro, nomeadamente americano, em detrimento da defesa dos interesses das massas populares. Portanto, nesse aspecto, não há mudança nenhuma. O que há é novos secretários que dão alguma imagem de novidade e parecem ter vontade de fazer alguma coisa, mas não significa que têm vontade de fazer mudanças significativas em termos de políticas governamentais e nem significa que possam vir a fazer aquilo a que se propõem fazer.
- Em relação aos discursos nas Linhas de Acção Governativa sente-se essa novidade ou essa vontade, pelo menos das caras novas?
A.K. – Como digo, novidade talvez em acelerar algumas coisas que andavam a ser arrastadas, mas não propriamente vontade em fazer uma mudança significativa de políticas. Vejamos o caso do novo hospital das Ilhas, que já estava previsto, mas constantemente atrasado. Claro que isso é positivo. Se havia alguma coisa que era importante e que tardava em ser executada e se agora for executada mais depressa, claro que é positivo se for feito. Ainda em relação à pasta dos Assuntos Sociais e Cultura não se vêem outras mudanças. A única novidade na política educativa é assustadora, a chamada educação patriótica. De resto não se vislumbra nada e há vários problemas na educação.
- O discurso da educação patriótica parece-lhe forçado? Faz sentido?
A.K. – Não faz sentido nenhum, do ponto de vista da generalidade das pessoas de Macau que se interessam pela educação e pela liberdade de expressão e de pensamento. Faz sentido do ponto de vista do Governo chinês, já que é um Governo totalitário, que pretende à viva força doutrinar as pessoas e condicionar o avanço do regime rumo a uma maior democratização - nunca total -, e a evolução das próprias mentalidades.
- Considera que é um mau sinal?
A.K. – É um péssimo sinal, mas, ao mesmo tempo, as pessoas às vezes até podem fingir que acreditam. Na China, que eu saiba, as pessoas não têm a menor confiança no Partido Comunista. Até podem ter medo de falar, de criticar publicamente ou desafiar. Felizmente, a China não é como a Coreia do Norte, onde não sabemos sequer se as pessoas realmente acreditam ou se se sentem obrigadas a fazer teatro. Na China sabemos, pelo contacto que temos com as pessoas, que elas não acreditam em muito daquilo que a propaganda chinesa diz. Se recordarmos o contexto em que a educação patriótica foi lançada em Macau depois do “Verão Quente” do ano passado, de repente, parece que se tornou extremamente importante. Primeiro, com a derrota da proposta de lei que vinha dar privilégios aos políticos e com as manifestações, depois o referendo civil, que sofreu aqueles ataques todos mas, ainda assim, conseguiu um número considerável de participantes, para além do movimento Occupy em Hong Kong. Veio então o representante do Governo Central, Li Gang, dizer que tinha um estudo que revelava que só 30 por cento dos chineses de Macau se sentiam chineses. Não acredito nestes dados. Em todos estes anos, nunca conheci nenhum chinês em Macau que não se sentisse chinês, ao contrário dos de Hong Kong. Mas isto para justificar depois a necessidade da educação patriótica. É óbvio que, do ponto de vista da China, uma educação dessas será uma doutrinação, uma vez que é confundido o “Amor à Pátria” com o respeito pelo regime político e pelo Partido Comunista. E do ponto de vista dos governantes de Macau, não hão-de querer desafiar o Governo Central, tentando, pelo menos aos olhos de Pequim, que essa educação seja ideológica e doutrinária. Mas ao mesmo tempo, quiseram fazer com que aos olhos da população de Macau, não seja assim. Por isso vieram dizer que se pretende um ensino objectivo e científico. Mas aqui, que se saiba, já se estuda a História da China nas escolas.
- Macau está em posição de fazer valer as suas vontades perante Pequim?
A.K. – Acho que os governantes de Macau, nem sei se tentam, mas uma vez que dependem do Governo de Pequim para estarem nos seus lugares, podem tentar até ao ponto em que isso não ponha em perigo a subsistência desse poder. As coisas vão ser condicionadas pelo Governo chinês. Como aliás acho que é a política económica em geral do Governo. Desde a decisão de abrir parte da concessão do jogo a empresas americanas e deixar que o capital americano domine parte da economia de Macau, até à forte concentração da política do Governo no sector do jogo, parece-me que isso, de uma maneira ou de outra, é ditado por Pequim. Os dirigentes chineses até podem vir cá com aquela lenga-lenga de que é preciso diversificar a economia, mas a verdade é que o Governo Central nunca fez nada para diversificar a economia. Será que agora pretendem que Macau diversifique a sua economia afundando o sector do jogo?
- O combate à corrupção tem a ver com o arrefecimento do sector do jogo em Macau?
A.K. – É possível, uma vez que havia muita gente corrupta que vinha cá jogar. Mas suponho que o Governo chinês, embora sabendo que essas acções podem ter algum impacto no sector do jogo em Macau, deve estar, também, a controlar isso. Ou seja, provavelmente está atento às flutuações das receitas e vê que, mesmo que o volume dessas receitas desça, os interesses fundamentais da oligarquia de Macau continuam garantidos. Para os trabalhadores e para as massas populares, o Governo chinês está-se nas tintas, só não quer que haja grande instabilidade. Claro que se houvesse agora desemprego massivo e revolta nas ruas com grandes manifestações, isso assustaria o Governo Central que não há-de querer que se chegue a esse ponto.
- A redução das receitas do jogo e a possibilidade de isso afectar os trabalhadores, por exemplo, através de despedimentos, torna preocupante o facto de Macau não ter uma lei sindical?
A.K. – É preocupante e desvantajosa, desde há muito tempo. A solução para ultrapassar este problema não estaria numa lei sindical má que eventualmente seria proposta pelo Governo e inspirada na lei sindical de Singapura ou de outro regime autoritário. A solução residiria na adopção de uma lei verdadeiramente protectora da liberdade sindical como têm sido sempre os projectos do deputado José Pereira Coutinho, inspirados na lei portuguesa, um regime democrático. Se for o Governo a tomar a iniciativa, não sei como alguém pode imaginar, sinceramente, que um Governo como este iria apresentar uma proposta semelhante à do Coutinho.
- Mais vale não haver lei sindical do que haver uma lei má?
A.K. – Claro. E, já agora, presumo que o Governo não iria procurar inspiração na lei portuguesa. Seria, talvez - na melhor das hipóteses, que ainda assim seria má -, na legislação britânica do tempo de Margaret Thatcher ou na de Singapura ou da China Continental. Realmente, entre não haver - que é uma situação má -, e haver uma lei fortemente restritiva da liberdade sindical, é melhor não haver. Porque a liberdade sindical consagrada na Lei Básica e no Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e algumas convenções da Organização Internacional do Trabalho, consta de normas que são auto-exequíveis. O artigo 27º da Lei Básica é uma disposição que se aplica directamente na esfera jurídica dos cidadãos. Mesmo que não haja uma lei ordinária, pode ser aplicada e invocada directamente com respeito pelos princípios gerais do sistema jurídico, como a proibição do abuso de direito. Mas está também consagrada a liberdade de associação. Então, ao abrigo dessa liberdade, podem ser criadas associações sindicais, independentemente de se chamarem sindicatos.
- Reconhece essas características em alguma associações locais?
A.K. – A ATFPM [Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau] anda lá próxima. Apesar de não ter aproveitado plenamente as possibilidades que tem do ponto de vista jurídico. Se é uma associação que tem por objecto a defesa dos interesses sócio-laborais dos trabalhadores da função pública e é possível exercer a liberdade sindical e o direito à greve e de manifestação, directamente com base no artigo 27º, em teoria, a ATFPM poderia convocar uma greve.
- Estamos em véspera do 1º de Maio. Como vê a dinâmica desta data em Macau?
A.K. – A última vez que houve um número significativo de trabalhadores da função pública a participar nessas manifestações, creio que foi em 2008 e iam com máscaras. Aliás, foi a própria ATFPM que as distribuiu para depois os participantes não sofrerem retaliações nos seus serviços. até porque a polícia tem o costume de filmar de perto os manifestantes, portanto, facilmente tem uma lista dos participantes. Por outro lado, as pessoas que trabalham na Administração têm cada vez mais um vínculo precário, o que significa que têm que fazer o possível para agradar aos chefes.
- Houve há pouco tempo a convocação de manifestações por uma associação ligada aos trabalhadores do jogo e uma ameaça de greve, tendo sido denunciadas pressões. Macau está preparada para essa realidade sindical?
A.K. – Vemos nessa associação um embrião de uma associação sindical. Está a desenvolver-se e poderá vir a formar-se como tal e tem adoptado medidas dessa natureza, nomeadamente, a convocação de uma greve. Depois veio a falhar, na medida em que os trabalhadores em vez de invocarem formalmente o direito à greve, pediram atestados médicos. Formalmente, não foi uma greve, ainda que materialmente o tenha sido. Agora, houve pressões, segundo veio nas notícias, do empregador e do Governo Central. Houve uma denúncia de um dirigente dessa associação, segundo a qual, um residente influente de Macau, membro do Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, terá sido encarregado pelo Governo Central de transmitir um recado para a associação moderar as suas acções. Nunca se soube quem era essa pessoa, mas podemos imaginar. Seria Edmund Ho? Não quero fazer acusações infundadas, mas não há assim tantas pessoas influentes membros da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês.
- A secretária Sónia Chan tem em mãos o processo de simplificação administrativa. Há quem fale no peso excessivo da Administração. Crê que poderá solucionar alguns problemas?
A.K. – Em primeiro lugar, não só não há excesso de trabalhadores na função pública, como haverá falta, já que muitos estão sobrecarregados. Além de que, tendo em conta que os governos local e central são responsáveis pela falta de diversificação económica de Macau, e uma vez que têm obrigação de garantir emprego às pessoas, têm que aumentar a oferta de emprego no sector público. Por outro lado, não me parece que o problema seja os trabalhadores da função pública não fazerem bem o seu trabalho. O trabalho acumulado pode ser uma das causas explicativas do atraso de alguns procedimentos administrativos, mas também a atitude dos chefes que, como se diz, podem ter alguma dificuldade em decidir ou complicar os procedimentos.
 - Foi também anunciada a criação de órgãos municipais. Como vê essa iniciativa?
A.K. – A criação do IACM [Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais] em substituição dos municípios veio agravar o problema de sobreposição de atribuições. Ao longo dos tempos tem havido algumas clarificações, mas criação dos órgãos municipais será positiva, ou não, conforme o figurino que irão ter. Se não forem órgãos eleitos, não vejo qual é a vantagem que traz. Fui contra a extinção dos municípios e recordo que foi preparada mais ou menos em segredo. Na altura o que se dizia era que os municípios tinham que ser extintos porque a Lei Básica dizia que podiam existir, mas não poderiam ter poder político. Ou seja, os órgãos tinham que deixar de ser eleitos, o que não faz sentido nenhum, porque uma coisa não implica a outra. Uma coisa é a natureza dos poderes, outra é o provimento desses poderes. Se a solução for ter órgãos municipais com membros integralmente nomeados pelo Chefe do Executivo, então qual é a vantagem? Será como desdobrar o IACM. Quase como criar sedes do IACM em diferentes partes de Macau."

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