segunda-feira, 5 de outubro de 2015

MACAU: Sem voz eleitoral



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“Não recebi o boletim”. A resposta repetiu-se ontem entre vários portugueses contactados pelo PONTO FINAL, que se viram impossibilitados de exercer o direito de voto. Entre os inquiridos está Lúcia Lemos, a residir há 33 anos na RAEM, a quem nunca antes tinha sido vedado o direito de participar num sufrágio.
“Não recebi o boletim, é difícil perceber porquê. Terão que ser apuradas as responsabilidades”, sustenta José Sales Marques, contactado pelo PONTO FINAL, que se viu impedido de votar para o Parlamento português. O economista aponta o dedo a uma legislação que diz desconhecer as especificidades da emigração em Macau, ao excluir os eleitores cujos boletins de voto foram devolvidos por mudança de morada. “A Lei de 1999 é inaceitável e impossível de entender. Mudar de morada é uma coisa perfeitamente natural para quem vive em Macau, com os preços altíssimos das rendas, onde é normal mudar de casa todos os anos”.
Ainda que impedido de participar no acto eleitoral, Sales Marques preparava-se ontem para aguardar até às 3 horas da madrugada de hoje (20h de ontem em Portugal) para conhecer o resultado das primeiras sondagens à boca das urnas. “Sim, estarei acordado até essa hora. É muito importante, há grandes expectativas em relação a esta eleição. E é importante perceber a abstenção, é um indicador do estado de espírito da população em relação a estas eleições”.
“Custa-me ser um português de segunda”
Quando uma outra voz soa do outro lado da linha, repete-se a resposta: “Não recebi o boletim”. Desta vez é Pedro Lobo, professor na Escola Portuguesa de Macau, quem admite ter sido excluído do sufrágio. E rapidamente aponta baterias a um sistema que diz ser obsoleto. “É um sistema que está ultrapassado, já devia ter sido alterado. Em 2005 houve uma experiência piloto, por voto electrónico, feito a partir de casa, em que participei. E correu muito bem. Este é um método arcaico, há custos inerentes ao voto que não se justificam. Há alternativas, como o voto electrónico ou o voto electrónico presencial. Com as tecnologias de encriptação, ninguém pode violar o voto”, defende o professor de informática.
Pedro Lobo conta que, entre os seus amigos, “vários não conseguiram votar”. Entre aqueles que conseguiram, “alguns gastaram 178 patacas para enviar o voto em correio expresso, para este chegar atempadamente a Portugal”. Segue-se o desabafo de quem se sente relegado para um secundaríssimo plano: “O que a lei diz é que com duas devoluções [do boletim de voto, por alteração da morada] o meu direito a votar está suspenso. Nem os que estão condenados com pena de prisão em Portugal estão impedidos de votar. Custa-me ser um português de segunda”.
Também o professor se preparava ontem para uma noite longa, a acompanhar a cobertura televisiva das Legislativas. “Sim, vou aguardar, quero ver qual o resultado, se vai haver uma confirmação das sondagens. Quem tem uma postura cívica, tem todo o interesse em saber o que nos espera para os próximos quatro anos. O que acontece em Portugal também nos afecta em Macau”.
“Será este desleixo intencional?”
Frederico Rato insistiu, mas também ele não viu a cor do boletim. “Não recebi, fiz várias tentativas. Mas foram muito prestáveis nos correios, no sábado tinha uma mensagem deles para ligar para tratar de um assunto do meu interesse, só que já liguei depois das 13 horas”.
O advogado refere-se, assim, a um processo eleitoral que na RAEM esteve longe de decorrer com tranquilidade: “Houve alguma desordem e desorientação numa acção tão importante como é permitir o direito de voto a todos os portugueses. Este parece-me ser um indicador do desinteresse pelo direito ao voto dos expatriados. Há uma menorização do eleitorado que está afastado do país, que é um direito que está constitucionalmente consagrado”. O causídico vai mais longe, e questiona: “Não sei até que ponto, neste desinteresse, não haverá uma intencionalidade. Haver um menor número de pessoas a votar, de modo a que os mesmos se possam perpetuar como representantes da Europa e Fora da Europa no Parlamento. Será que este desleixo e desinteresse não é intencional?”.
Também o advogado iria esticar o serão para conhecer o novo Executivo. “Estou com uma curiosidade muito aguçada. Não é de natureza partidária, eu não tenho partido. Voto sempre no quadrante de esquerda, mas não no mesmo partido. É uma motivação de natureza cívica, política e ideológica. Tenho muito interesse em saber qual o destino do meu país para os próximo quatro anos”.
A ligação umbilical a Portugal
E se depois de três décadas a residir em Macau, se visse impedido de votar? Assim aconteceu a Lúcia Lemos, da Creative Macau, para quem o boletim não deu entrada na caixa de correio. “Nem sei o que possa comentar, deve haver aí uma grande falha. Vivo cá há 33 anos e sempre consegui votar”. E terá Lúcia sido excluída dos cadernos eleitorais por mudança de residência? “Não mudei de morada. Nunca tive problemas”.
A incompreensão não ia afastá-la, ainda assim, da maratona televisiva em noite eleitoral: “Uma pessoa interessa-se pelo que se passa em Portugal, apesar de estar longe. Porque isso vai determinar uma certa política que nos afecta também, nem que seja pelas pessoas que se deixa lá. Nunca se perde a ligação ao país, que é umbilical, e um dia podemos voltar”. S.G.

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