Charles Chauderlot revela que a colecção a tinta da China que retrata a Cidade Proíbida - em exposição no MAM - foi adquirida por um coleccionador de Macau. Para o artista é o melhor que poderia acontecer à colecção de 81 desenhos: permanecer completa e em território chinês. O artista vai inaugurar na terça-feira uma outra exposição: “Ma-Boa Lis-Cau”, na Creative Macau. A iniciativa mostra o princípio de uma nova forma de pintar a cidade.
Cláudia Aranda
"O pintor Charles Chauderlot está em Macau para a inauguração da exposição “Ma-Boa Lis-Cau”, que estará patante ao público na galeria da Creative Macau. O evento está agendado para terça-feira, 23 de Fevereiro, às 18h30. Em entrevista ao PONTO FINAL, aquele que é o único artista ocidental que teve acesso e desenhou áreas restritas da Cidade Proíbida, em Pequim, revela que a colecção, que reúne 81 pinturas originais a tinta da China foi adquirida no final do ano passado por Peter Lam, influente empresário de Macau, membro do Conselho Executivo e do Conselho de Curadores da Fundação Macau. Ao PONTO FINAL, Peter Lam confirmou que adquiriu a colecção e que o acervo vai estar sempre disponível para ser mostrado ao público, porque é esse o objectivo de Lam: educar e ensinar a cultura chinesa através destes trabalhos únicos. A 1 de Março vai ser lançada também uma colecção de selos pelos Correios de Macau com a Cidade Proíbida. O artista – que na verdade se chama Carlos Chaderlot Cortés – nasceu em Madrid, em 1952, filho de pai francês e de mãe espanhola. Afirmou-se como artista em França, depois de estudar Direito e Ciências Políticas. Em Pequim, começou a pintar a preto-e-branco e com tinta da China. Agora, promete mudar de estilo e regressar à cor.
PONTO FINAL – Acaba de regressar de Espanha...
Charles Chauderlot - É muito estranho, quando era mais novo, porque estudei em França, sentia-me francês. Mas, agora com o tempo, a experiência, a vida, e no estado em que está a sociedade francesa ... Sinto-me mais espanhol. Estive fora da Europa 18 anos. Voltei a Espanha por uma questão de saúde. Estive fora de Macau durante três anos, por causa disso. Depois deste tempo senti que era um estrangeiro em França. Não me sentia francês. A mentalidade dos franceses mudou muito, falam dos estrangeiros de uma forma que não compreendo, os franceses tornaram-se muito orgulhosos. Como não entendia os franceses, decidi ficar em Espanha. Sinto-me melhor em Espanha, os espanhóis parecem mais abertos.
- Os franceses tornaram-se racistas?
C.C. – Não é racismo, é estupidez (...). Os franceses costumam dizer que tiveram um império. Mas, não é verdade. Os portugueses, os espanhóis, eles invadiram o mundo, e misturaram o seu sangue. Os franceses nunca. Esta é a grande diferença. Eles não tentam compreender o outro. Se olharmos para a arte, a arquitectura – e conheço muito bem a arquitectura colonial espanhola e a portuguesa – os portugueses misturam na arquitectura elementos nacionais, de Portugal, com outros temas externos. Podemos ver aqui em Macau, no Quartel dos Mouros [arquitectura com influência mughal ou islâmica construído em 1874 para albergar o regimento indiano, proveniente de Goa]. Não há este tipo de arquitectura nas colónias francesas.
- É esse caldo cultural que o motiva a desenhar?
C.C. – Sim, penso que me faz abrir horizontes, torna o meu olhar mais artístico.
- Quando é que se apercebeu dessa fusão?
C.C. – Na minha primeira viagem à América Central, no México e na Guatemala, devia ter uns 20 anos. Mas, nesta altura estava mais interessado na arquitectura antiga mexicana [pré-hispânica]. Comecei a interessar-me pela arquitectura colonial quando cheguei à China, em 1996. Vivi 10 anos em Pequim e de lá fiz muitas viagens dentro da China. Vi a arquitectura estrangeira em Tianjin e nos lugares que no século XIX foram ocupados pelos estrangeiros. Achei interessante, porque os chineses no século XIX tentaram misturar a sua arquitectura com a arquitectura ocidental. Eu fiquei muito curioso, nunca tinha visto em nenhum livro. Descobri isto no local. Ao mesmo tempo que me apercebi disto, começo a ver o Governo chinês a demolir estas casas antigas. Fui uma espécie de testemunha de qualquer coisa que existia antes e que agora está demolido. Mais tarde, em 2005, sentia-me triste, porque vi muita coisa, casas, cidades, a serem demolidas pelo Governo chinês. Na altura, pensei voltar para a Europa. Mas, isso não aconteceu. Tive entretanto uma exposição em Hong Kong, em 2005. Aí, fui convidado a vir e descobri Macau. Para mim, Macau era perfeito, continuava na China, mas não precisava de voltar a Espanha para beber vinho ou usar azeite na comida. Mudei-me para Macau e por cá fiquei. Aqui descobri esta influência colonial, nos edifícios, na comida, na língua. A partir daqui, apanhei o avião para a Malásia, Indonésia e descobri mais impérios coloniais: o inglês, o holandês. Gosto de pintar estas misturas.
- O que é que inicialmente o trouxe a Pequim?
C.C. – Vim a primeira vez à China porque fui convidado por um dos meus clientes em França. Cheguei a Pequim em 1996. Fiquei um mês, descobri a Pequim antiga. Quando voltei à Europa, a minha vida tinha mudado e tinha-me tornado solteiro. Foi aí que decidi regressar a Pequim, por um ano, e acabei por ficar 18. Voltei e descobri rapidamente que era impossível viver na China sem falar e escrever chinês. Inscrevi-me na Universidade de Pequim. Em Janeiro de 1997 mudei-me definitivamente.
- Foi a escrita que o fez submergir na técnica da tinta da China?
C.C. – Na universidade, aprendi muitas coisas e tive muita sorte. Eu era um aluno muito mais velho, todos os outros estrangeiros eram muito jovens. Por isso, o departamento de segurança da universidade, ao fim de três semanas chamou-me para me interrogar: “És francês ou espanhol?”, primeira pergunta. Os chineses têm uma única nacionalidade, não podem ter duas. Era difícil compreender. “Qual é a tua profissão?”. E eu respondi: “Artista”. Aí eles disseram: “Então, mostra-nos as tuas pinturas”. Eu mostrei os esboços de Pequim que já tinha feito, eles ficaram convencidos e levaram-me ao professor de pintura chinesa da universidade. Comecei a aprender como usar e pintar com os pincéis chineses. Até que o professor um dia disse-me: “És um pintor bom, talvez melhor do que eu. Apenas te posso mostrar como usar os pincéis e como escolhê-los. Depois só tens de praticar e, ao fim de alguns anos, deverás tornar-te um artista muito famoso”. Hoje confirmo que é verdade. Sinto-me feliz, afortunado.
- O Charles foi o primeiro e, até agora, o único artista estrangeiro que obteve licença das autoridades de Pequim para entrar e retratar zonas restritas da cidade imperial, como é que isso foi possível?
C.C. – Porque é China. Tudo é proíbido, mas tudo é possível (risos). Em Março ou Abril de 2002 tive uma exposição em Pequim, com muitos esboços feitos nos bairros de Pequim que iam ser demolidos por causa dos Jogos Olímpicos. Era uma zona histórica junto à Cidade Proíbida. Na altura houve muitos manifestantes a protestar contra aquela decisão. E a minha exposição retratava aqueles lugares que iam ser demolidos. Eu não era responsável pela decisão do Governo de arrasar os bairros. Era apenas responsável pelas minhas pinturas. Mas, os jornalistas chineses usaram as minhas pinturas para ilustrar o protesto contra a decisão do Governo. Quando a minha exposição abriu, a galeria foi rodeada pela polícia, os visitantes eram revistados. Havia uma fila enorme, mais de mil pessoas à espera para entrar, os media estavam lá a fazer a cobertura. Não me senti confortável com a situação. Até que o gerente da galeria disse-me para restringir as entradas: ficaram apenas algumas pessoas, talvez membros da polícia secreta, e um deles quis comprar uma das minhas pinturas. Mas, a pintura já tinha sido assinalada por um comprador, e eu disse: “A pintura já está vendida”. O gerente da galeria avisou-me que era uma pessoa importante. O homem insistiu, ofereceu o dobro do preço, mais do dobro, mas eu expliquei: “Não, a minha palavra acima de tudo, se já prometi a um comprador não posso vender a outro”. Então, ele contrapôs: “Então será que podes vir pintar o meu gabinete?”. E eu, disse, “Claro, onde trabalhas?”. E ele responde: “Na Cidade Proíbida”. O acordo não podia ser melhor. "Mas tenho que te dizer uma coisa: a pintura que querias comprar, foi pintada em Pequim numa zona proibida, num templo, onde as pessoas não estão autorizadas a entrar. É um lugar especial, é o quartel-general do Partido Comunista do Tibete em Pequim. Mas, antes, foi um templo. E o homem olhou-me e disse: “Eu sei”. Então, disse: “Se sabes, e pediste para pintar na Cidade Proibida, então vais ter que me autorizar a pintar nos lugares de acesso não autorizado”. O homem sorriu e disse. “És muito esperto” e aceitou. Esperei nove meses, ao fim desse tempo ligaram-me da galeria a dizer que tinha um passe especial para entrar na Cidade Proíbida, nas zonas não autorizadas, por três meses. Ao fim de três meses, mostrei-lhe os desenhos, ele achou fantásticos, falámos muito, e deu-me mais seis meses. E de seis meses em seis meses, acabei por ficar dois anos.
- Quantos desenhos realizou em dois anos?
C.C. – Seleccionei 81 desenhos, que estão em exposição no Museu de Arte de Macau. Estas 81 pinturas têm um significado muito forte, porque a Cidade Proíbida não é apenas um palácio bonito. É o símbolo dos poderes do imperador, político, administrativo, militar, cultural, religioso. Há templos, óperas, edifícios administrativos e eu pintei cada um desses lugares. Penso no meu professor da Universidade de Pequim que profetizou que um dia eu seria um pintor famoso. Pois, esta exposição acaba de ser comprada por pessoas importantes aqui no território para que possa ser mostrada em Macau. Eles compraram a exposição completa para ensinar o significado da Cidade Proibida.
- Quem é que comprou esse acervo?
C.C. – Peter Lam. Durante estes dois anos em que pintei na Cidade Proíbida li muito, tentei compreender o significado daqueles edifícios. Porque percebi que todos os edifícios são muito diferentes, apesar de parecerem idênticos. Quando estás em frente do edifício e olhas durante horas e horas percebes as diferenças. Quando tentei explicar isto aos ocidentais, eles não compreenderam. Na China, a arquitectura parece muito igual, a diferença está nos detalhes. Alguns chineses – como Peter Lam – ele percebe que trata-se de um ocidental que conseguiu entender todas as diferenças da arquitectura chinesa. Para mim, é uma colecção única. A minha experiência foi única. E este lugar é único. Se tivesse que vender a colecção seria completa. Saber que esta colecção é propriedade [de alguém] da China penso que é o melhor que poderia acontecer para o futuro do meu trabalho. É uma grande honra. Quando Peter Lam comprou a colecção eu sabia que não era para investir e vender à peça. Sei e partilhei com ele este desejo. Esta colecção deve permanecer inteira. Poderia ter feito mais dinheiro se tivesse vendido a um investidor. Mas, dinheiro não é suficiente. O significado do meu trabalho é muito mais importante.
- Vai ter agora duas exposições em simultâneo, em Macau...
C.C. – Na Creative Macau mostro algo totalmente diferente. Vou expor sete trabalhos realizados em Lisboa e outros sete feitos em Macau. Tento fazer uma graça. Lisboa, capital de um grande império, Macau, um pequeno porto importante para o comércio, agora um centro de jogo. Com estes trabalhos, tento mostrar que, apesar das cidades e das pessoas serem diferentes, podemos encontrar atitudes semelhantes.
- Macau ainda faz sentido para si?
C.C. - Sim, tenho planos para regressar. Mas, tenho que pensar como renovar o meu ponto de vista. Esta exposição na Creative é o princípio de uma nova forma de pintar a cidade. Antes, pintei Macau como o fiz em Pequim: pintei a memória histórica. Quando cheguei em 2005, Macau era muito diferente. Hoje muitos edifícios desapareceram, a forma de estar é diferente, o clima está diferente. Não posso pintar mais o passado, porque o passado está a desaparecer. Penso que as pessoas precisam de se aperceber que estão a cometer um erro. Não sou eu que tenho que mostrar que é um erro. Sou um artista, não sou um político, não estou aqui para dizer: faz isto, não faças aquilo. O meu objectivo é pintar a beleza. Se as pessoas a destroem não é minha responsabilidade, a minha tarefa é pintar a beleza. Agora, Macau é um lugar de jogo, mais do que antes. Pintar um lugar de casinos pode ser engraçado. Tem de ser durante a noite, é mais colorido. Vou ter que mudar o meu estilo, deixar de pintar a preto-e-branco e regressar ao meu estilo anterior, pintar a cores."
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sábado, 20 de fevereiro de 2016
MACAU: "Não posso pintar mais o passado, porque o passado está a desaparecer"
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