domingo, 14 de fevereiro de 2016

QUARTO DE DESPEJO - Diário de uma favelada*

* MAIO DE 1979: estou no Rio de Janeiro pela primeira vez e, passados os primeiros dias de admiração pelas maravilhas visíveis da paisagem, "assalta-me" a natural curiosidade de saber o que se passa para além da beleza circundante, na favela que se esconde para lá dos Corcovados, do Pães de Açúcar, da Copacabana, dos brotinhos que "desfilam" nos areais sem fim, das falas doces que se ouvem ... Nascida a vontade de conhecer as traseiras de tudo, que é onde os profissionais da sociologia, dizem, encontram os lugares que se escondem atrás das bonitezas que se vêem num primeiro olhar, fui tentado a saber se havia quem, que não Jorge Amado, por exemplo, tivesse contado, na primeira pessoa, o que se passa lá, onde dizem ser perigoso entrar: A FAVELA. E encontrei. Encontrei o depoimento escrito (que tomei, tomo como sério) que, a partir de hoje, depois de aqui ter divulgado um ou outro extracto, a partir de hoje, juro, pouco a pouco, vou publicar na integra enquanto documento de um universo que bom será não esquecer - porque existe, existe (estou convencido) ainda - um pouco por todo o lado, escondido onde, em regra, turista não sabe ...

QUARTO DE DESPEJO - Diário de uma favelada (em Maio de 1979, na sua 9ª edição - 90º milheiro, edição popular), até que o dedo me doa - AQUI transcrito (em "gotas"). Autora: Catarina Maria de Jesus. Para que a favela assim não se esconda atrás de um Pão de Açúcar, do nosso primário fascínio turístico.

Vão ser dezenas de mensagens transcritas de uma edição popular, que mantenho a centímetros de um ou outro livro de Jorge Amado e/ou Erico Veríssimo, por exemplo. Que muito aprecio, noto, mas para que se percebam ainda melhor as diferenças de uma Carolina Maria de Jesus, quase analfabeta, que escreveu sem editora na retaguarda - e aqui vai "dizer de sua justiça"...

"1955 - 16 de Julho

Levantei. Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar agua, Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem café simples e comesse carne com farinha. Eu estava indisposta, resolvi benzer-me. Abri a boca duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição desapareceu saí e fui ao seu Manuel levar umas latas para vender. Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que precisava comprar pão, sabão e leite par a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava! Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta. A Vera não tem sapatos. E ela não gosta de andar descalça. Faz uns dois anos, que eu pretendo comprar uma máquina de moer de carne. E uma máquina de costura.

Cheguei a casa, fiz o almoço para os dois meninos. Arroz, feijão e carne. E vou sair para catar papel. Deixei as crianças. Recomendei-lhes para brincar no quintal não sair na rua, porque os péssimos vizinhos que eu tenho não dão socêgo aos meus filhos. Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gozar descanso. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte (...) Catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros, umas latas, e lenha. Vinha pensando. Quando eu chegar na favela vou encontrar novidades. Talvez a D. Rosa ou a indolente Maria dos Anjos brigaram com meus filhos. Encontrei a Vera Eunice dormindo e os meninos brincando na rua. Pensei: são duas horas. Creio que vou passar o dia sem novidade! O João José veio avisar-me que a perua que dava dinheiro e estava chamando para dar mantimentos. Peguei a sacola e fui. Era o dono do Centro Espirita da rua Vergueiro 103. Ganhei dois quilos de arroz, idem de feijão e dois quilos de macarrão. Fiquei contente. A perua foi-se embora. O nervoso interior que eu sentia ausentou-se. Aproveitei a minha calma interior para eu ler. Peguei uma revista e sentei no capim, recebendo os raios solar para aquecer-me. Li um conto. Quando iniciei outro surgiu os filhos pedindo pão. Escrevi um bilhete e dei ao meu filho João José para ir ao Arnaldo comprar um sabão, dois melhorais e o resto pão. Puis água no fogão para fazer café. O João retornou-se. Disse que havia perdido os melhorais. Voltei com ele para procurar. Não encontrámos. 

Quando eu vinha chegando no portão encontrei uma multidão. Crianças e mulheres, que vinha reclamar que o José Carlos havia apedrejado suas casas. Para eu repreendê-lo."



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