Naquele andar alugado da avenida de Berna, em Lisboa, funcionava uma repartição do Exército que, salvo erro, dependia da Administração Militar. Dirigia-a um simpático brigadeiro, mas o responsável pela assoalhada onde funcionava a chamada biblioteca era um capitão que ía lá uma vez ou duas por semana ver "em que paravam as modas." Fui, assim, durante meses, por determinação não sei de quem, seu "adjunto" para as (raras) entradas e saídas de livros verificadas.
Entretanto, se a tropa (involuntária) não conseguiu fazer de mim um cidadão como devia ser, a verdade é que, a altura e as circunstâncias, desde logo facilmente perceptíveis, se conjugaram para a sublimação da velha máxima "patrão fora, dia santo na loja..." Os livros de estratégia militar não me pareciam aliciantes, os Diários do Exército não me melhoravam as eventuais sabedorias, os livros de ficção não abundavam, os dicionários serviam para os que tinham dúvidas, os jornais que chegavam, lia-se um e, talvez por causa da Censura, ficavam todos lidos. Donde...não havia que fazer...
Mas o capitão, esse, uma espécie de menstrução (semanal), lá ía aparecendo "conforme os regulamentos" e tendo justificar presenças e combater (pelos modos, sempre a ideia antiga do combate...) o tédio, inventou inventários semanais às estantes encostadas ao antigo quarto em que - dizia na porta... - era a Biblioteca, isto é, descontada a superfície de uma porta e da única janela existente, a assoalhada onde, depois de devidamente numerados, se encostavam à parede as edições que se recebiam uma vez por outra...
Ora eu que fora para ali sem me terem falado de dever, sem me terem ensinado nada, a não ser fazer continência e pouco mais, enquanto "cá fora" o dinheirinho que, entretanto, deixara de ganhar, fazia falta à família, nunca consegui CUMPRIR tão religiosamente como o "nosso capitão", semanal e regular presença (antecedida da ritual continência ao "nosso" brigadeiro).
Resultado, a cena semanal era sempre a mesma e, por razões óbvias, passou a não poder ser outra...
Vejamos o cenário:
De frente para a porta da "biblioteca", "livro de existências" poisado na secretária do "nosso capitão", a "voz de comando":
- "Livro número 24?
- 24?!... Sim, meu capitão: "Regulamento de Disciplina Militar de tantos do tal a tantos do tal..."
- Certo! Outro: livro número 25?
- 25?...
- Sim!!!
- Está aqui. É o "Anuário Militar de Mil Oitocentos e..."
-Exacto. Livro nº 28?
- 28,meu Capitão?
- Sim, 28!!!
- Não está...
- Não está?...
- Não, meu Capitão. Não o vejo...
- Lá está você... Veja bem!...
- Não está, meu Capitão!...
- Eu vou aí...
- Ah, meu Capitão, está aqui atrás... Não o via...
- Continuemos. Exemplar nº 46?
- "Ordens e Contra-ordens".
- Sim. 49?...
- 49? O que está a seguir é o 52...
- Irra! Veja bem...
- Tem razão, meu Capitão: "Segurança Interna".
- 61?
-61?... O que está aqui tem o número 57: "28 de Maio"...
- Qual "28 de Maio", qual história... Você não percebe nada disto!..."
E foi, semanalmente, sempre assim: fazer o capitão sentir-se útil ao País, dando-lhe "que fazer" - uma vez por semana.
Acabei transferido, no mesmo andar, para outra sala, onde a função era agora obedecer a um velho brigadeiro que, de pé e de um lado para o outro daquela assoalhada (quiçá, antiga sala de jantar...), me ditava, a partir das informações oficiais recebidas, as actualizações a fazer no chamado "Mapa da Força", que visava ser como que uma espécie de lista permanente das tropas disponíveis em caso de emergência...
Procurei cumprir. Mas nunca se chegou a saber se, realmente, os militares disponíveis eram os averbados...
Até que, com a passagem à reserva do brigadeiro-director daquele piso da avenida de Berna, em Lisboa, todos os que ali "trabalhavam" foram distinguidos com um louvor verbal. Eu também, claro. Tanto mais que, para que, nos fins-de-semana, a bandeira nacional fosse hasteada como mandavam as regras, pagava dez escudos a um menos graduado que, por razões económicas, se ficava por Lisboa, sem nada para fazer.
Em resumo: cumpri mesmo! A Biblioteca funcionou; comigo, as Forças Armadas não revelaram debilidades e a bandeira nacional nunca deixou de estar hasteada quando a Honra o exigiu.
"Ditosa Pátria!..."
Entretanto, se a tropa (involuntária) não conseguiu fazer de mim um cidadão como devia ser, a verdade é que, a altura e as circunstâncias, desde logo facilmente perceptíveis, se conjugaram para a sublimação da velha máxima "patrão fora, dia santo na loja..." Os livros de estratégia militar não me pareciam aliciantes, os Diários do Exército não me melhoravam as eventuais sabedorias, os livros de ficção não abundavam, os dicionários serviam para os que tinham dúvidas, os jornais que chegavam, lia-se um e, talvez por causa da Censura, ficavam todos lidos. Donde...não havia que fazer...
Mas o capitão, esse, uma espécie de menstrução (semanal), lá ía aparecendo "conforme os regulamentos" e tendo justificar presenças e combater (pelos modos, sempre a ideia antiga do combate...) o tédio, inventou inventários semanais às estantes encostadas ao antigo quarto em que - dizia na porta... - era a Biblioteca, isto é, descontada a superfície de uma porta e da única janela existente, a assoalhada onde, depois de devidamente numerados, se encostavam à parede as edições que se recebiam uma vez por outra...
Ora eu que fora para ali sem me terem falado de dever, sem me terem ensinado nada, a não ser fazer continência e pouco mais, enquanto "cá fora" o dinheirinho que, entretanto, deixara de ganhar, fazia falta à família, nunca consegui CUMPRIR tão religiosamente como o "nosso capitão", semanal e regular presença (antecedida da ritual continência ao "nosso" brigadeiro).
Resultado, a cena semanal era sempre a mesma e, por razões óbvias, passou a não poder ser outra...
Vejamos o cenário:
De frente para a porta da "biblioteca", "livro de existências" poisado na secretária do "nosso capitão", a "voz de comando":
- "Livro número 24?
- 24?!... Sim, meu capitão: "Regulamento de Disciplina Militar de tantos do tal a tantos do tal..."
- Certo! Outro: livro número 25?
- 25?...
- Sim!!!
- Está aqui. É o "Anuário Militar de Mil Oitocentos e..."
-Exacto. Livro nº 28?
- 28,meu Capitão?
- Sim, 28!!!
- Não está...
- Não está?...
- Não, meu Capitão. Não o vejo...
- Lá está você... Veja bem!...
- Não está, meu Capitão!...
- Eu vou aí...
- Ah, meu Capitão, está aqui atrás... Não o via...
- Continuemos. Exemplar nº 46?
- "Ordens e Contra-ordens".
- Sim. 49?...
- 49? O que está a seguir é o 52...
- Irra! Veja bem...
- Tem razão, meu Capitão: "Segurança Interna".
- 61?
-61?... O que está aqui tem o número 57: "28 de Maio"...
- Qual "28 de Maio", qual história... Você não percebe nada disto!..."
E foi, semanalmente, sempre assim: fazer o capitão sentir-se útil ao País, dando-lhe "que fazer" - uma vez por semana.
Acabei transferido, no mesmo andar, para outra sala, onde a função era agora obedecer a um velho brigadeiro que, de pé e de um lado para o outro daquela assoalhada (quiçá, antiga sala de jantar...), me ditava, a partir das informações oficiais recebidas, as actualizações a fazer no chamado "Mapa da Força", que visava ser como que uma espécie de lista permanente das tropas disponíveis em caso de emergência...
Procurei cumprir. Mas nunca se chegou a saber se, realmente, os militares disponíveis eram os averbados...
Até que, com a passagem à reserva do brigadeiro-director daquele piso da avenida de Berna, em Lisboa, todos os que ali "trabalhavam" foram distinguidos com um louvor verbal. Eu também, claro. Tanto mais que, para que, nos fins-de-semana, a bandeira nacional fosse hasteada como mandavam as regras, pagava dez escudos a um menos graduado que, por razões económicas, se ficava por Lisboa, sem nada para fazer.
Em resumo: cumpri mesmo! A Biblioteca funcionou; comigo, as Forças Armadas não revelaram debilidades e a bandeira nacional nunca deixou de estar hasteada quando a Honra o exigiu.
"Ditosa Pátria!..."
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