Uma brevíssima introdução para uma carta que é longa e foi escrita no Território quando tudo ainda não era o que é ... Ou era nos bastidores e ... e à mesa do botequim ... Vale, portanto, apenas, eventualmente, o que vale a emoção.
Fica o registo. Que saiu em jornal e está no livrinho "À Sombra da Minha Latada", que consta, pelo menos, aí no Acerca de Mim, que antecede estas 2500 mensagens que, no fundo, agora assinalo.
"Minha querida Macau
De emoção me tremem as mãos no momento em que te escrevo e penso na honrosa e bela responsabilidade que assumes ao continuares a apresentar armas à nossa bandeira em cada manhã que chega. És da têmpera do Decepado e é, por isso, que, tudo perdido à tua volta, a seguras nos dentes como coisa também muito tua e que só largarás se te matarem.
De amargura me correm, entretanto, também, no rosto, lágrimas que são um grito de revolta contra todos os que esqueceram o Épico e nos andaram por aí, corpo vivo e integro, entragando sem dignidade nem glória em nome de alguns princípios que respeito, mas eles, afinal, bem vistas as coisas, rejeitaram. Mas as minhas lágrimas - esta ora amarga e triste, ora suave e doce, e elevada, e muita profunda emoção - são, ao mesmo tempo, qualquer coisa que, por parodoxal que pareça, sabe bem. São lágrimas que cantam, são lágrimas que fazem tremer os lábios e dizer baixinho, só para mim, os versos de "A Portuguesa". Sem saudosismos piegas, sem recurso a grandezas do passado para desculpar o presente. São lágrimas que correm mesmo que se não vejam - lá onde a garganta se aperta e a voz se emudece.
Macau, minha querida terra do Nome de Deus, em obediência a ti própria, resgata o que aconteceu em Timor e não deixes nem sequer que a sombra da bandeira portuguesa seja pisada. Nunca! "perdida a independência de Portugal a favor da Coroa de Castela nem por isso Macau deixou de continuar a hastear nos mastros das suas fortalezas a bandeira das Quinas".
Segue o destino que quiseres, mas jamais inutilizes a tua, a nossa bandeira.
Vai alta a noite quando te escrevo, rebentava se o não fizesse já, ainda sob a emoção do padrão que não destruiste, do Lusíadas que não rasgaste. Progride, como é do nosso tibre, em paz e convivência estreita com os outros povos, mas não deixes que arranquem das tuas mãos sagradas o pedaço de pano verde e rubro, o facho luminoso que conservas na tua honrada terra com a mesma determinação com que Camões, nadando com um só braço, salvou Os Lusíadas.
Eu não sei se vou ferir a tua modéstia, minha chinezinha querida, mas permite-me que, daqui, do recanto lusitano desta pátria tantas vezes ultrajada, te preste a homenagem, te diga uma palavra, te acaricie os cabelos, te beije a areias da praia, te chame cada vez mais minha - pela coragem, pelo elevado sentido cívico, pelo patriotismo, pela sabedoria que revelaste não deixando de levar até às grutas de Camões as crianças das escolas sem olhar à sua origem racial.
Macau, aceita uma palavra de estímulo - que, bem sei, não precisas - e continua! O futuro não pode construir-se em cima de folhas rasgadas de uma Obra que é de toda a Humanidade e que fala dessas paragens sem a preocupação de saber se a compõem maioritariamente chineses, portugueses ou outros.
Não é este o momento para dissertar sobre os teus problemas, as tuas preocupações, as tuas feridas. Não é esta a oportunidade para eu te considerar num plano mais vasto como território do sul da China. Para isso, outra ocasião há-de surgir. Hoje o que te queria transmitir era esta palavra trémula, mas consciente, de incontido palpitar, de verdadeira alegria por te ter visto chinesa por fora mas portuguesa no mais profundo de ti própria.
Sabes, Macau, eu conheci há pouco tempo gentes nossas compatriotas em terras também distantes da América do Norte e do Canadá e vi como Portugal não se deixa morrer nos costumes, no amor, na saudade da Terra-Mãe. Aí, muitos já nem portugueses são de direito, mas são-no de facto pela garra, pela força com que seguram a pequena bandeira que levaram das suas origens e conservam religiosamente em casa como símbolo de uma pátria que só se finará quando finado estiver o último dos seus filhos. E tu, Macau, que és Portugal, que não te fazes ainda representar por embaixadores, que conheces bem e não rejeitas Camões, tens obrigação, tens o dever de continuar honrando o nome deste pequeno rectângulo ocidental que te ajudou a dar expressão própria dentro daquele espírito, bem nosso, de integração cultural que faz com que estejamos em todas as partes do mundo por direito próprio com os Lusíadas numa mão e a enxada na outra. O que é importante é que não ignores e penses maduramente, serenamente, no alto e transcendente papel que desempenhas para a continuidade de uma cultura que já não é nossa por ser da Humanidade, mas que se for destruída ou profanada atentará contra aquilo por que ainda vale a pena viver: os reais valores da História.
Macau, minha querida, vai longa esta carta que a emoção quase impediu te escrevesse. Deixei que a minha caneta deslizasse, contudo, ao ritmo do coração e aqui tens uma dúzia de linhas, quiçá sem importância, de um português do Ocidente, emocionado e feliz por te ter encontrado tão lucidamente portuguesa, tão ordeiramente chinesa. Tu és, de facto, Portugal. Mesmo que os séculos de outro modo te venham a apelidar. Senti, com efeito, que seja qual for o futuro, nas tuas casas há-de haver sempre lugar para, na convivência fraternal entre os povos, mais do que entre as nações, recordares este pedaço de terra ocidental que também será sempre teu mesmo que se alargue para além dos Pirinéus em zona comum num mundo sem fronteiras.
Deixa que, por fim, te saúde com uma vénia e de mãos postas, como por aí fazem nessas paragens, te mande um grande beijo, minha querida, forte, e resistente, e única Cidade do Nome de Deus - leal como não há outra."
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