Não conheço Moçambique, mas "conheço" Mia Couto e, porque "conheço" Mia Couto, acho que conheço Moçambique. E, mesmo que me digam que Mia Couto não é Moçambique, eu não acredito.
Dizem-me que Moçambique está irrespirável, mas eu finjo que não oiço e vou ler Mia Couto. Este Mia Couto:
"Dá licensss.
A voz empurrava o espaço para dentro, criava assunto.
O que se passa, ó vizinho?, perguntou o do nono.
Se passa o problema de morar. Quando se mora tudo fica perto.
Um prédio é uma casa só, inteira de única. Todos, no prédio, são noivos do mesmo espaço. Matrimoniados pelo mesmo habitar. Acredite, a vizinhança é um casamento. Veja lá: os quartos adormecem encostados uns aos outros. Os filhos dos vizinhos gritamos-lhes ralhando com os nossos. Nos cheiros provamos a comida alheia antes de ela ser servida lá, na respectiva casa.Somos os dois lados da parede, um e outro, não acha?
E porquê esta toda introdução, meu amigo?
É que é por causa disso, por causa dessa introdução, que eu estou aqui, vizinho.
Então veio a minha casa por causa de uma introdução?
Calma, eu explico: esse seu pilão, no nono andar, barulha até lá no chão. É um barulho: até doenta-nos os ouvidos. Tunc, tunc, tunc ... É de mais, parece que estão a pilar a cabeça da gente. A nossa paciência, caro vizinho, está nos últimos grãos. Desculpe-me, mas eu tenho de lhe fazer esta autocrítica.
O homem do nono andar aceitou a queixa, razão dos incómodos sonoros. E explicou, apontando a menina: a pilosa é a minha sobrinha. Mas tem que ser, desculpe. A farinha toda moemos aqui em casa. Não pilamos por gosto."
Sem comentários :
Enviar um comentário