domingo, 3 de novembro de 2013

Esboço de crónica para Moçambique




Não conheço Moçambique, mas "conheço" Mia Couto e, porque "conheço" Mia Couto, acho que conheço Moçambique. E, mesmo que me digam que Mia Couto não é Moçambique, eu não acredito.

Dizem-me que Moçambique está irrespirável, mas eu finjo que não oiço e vou ler Mia Couto. Este Mia Couto:





"Dá licensss.

A voz empurrava o espaço para dentro, criava assunto.

O que se passa, ó vizinho?, perguntou o do nono.

Se passa o problema de morar. Quando se mora tudo fica perto.

Um prédio é uma casa só, inteira de única. Todos, no prédio, são noivos do mesmo espaço. Matrimoniados pelo mesmo habitar. Acredite, a vizinhança é um casamento. Veja lá: os quartos adormecem encostados uns aos outros. Os filhos dos vizinhos gritamos-lhes ralhando com os nossos. Nos cheiros provamos a comida alheia antes de ela ser servida lá, na respectiva casa.Somos os dois lados da parede, um e outro, não acha?

E porquê esta toda introdução, meu amigo?

É que é por causa disso, por causa dessa introdução, que eu estou aqui, vizinho.

Então veio a minha casa por causa de uma introdução?

Calma, eu explico: esse seu pilão, no nono andar, barulha até lá no chão. É um barulho: até doenta-nos os ouvidos. Tunc, tunc, tunc ... É de mais, parece que estão a pilar a cabeça da gente. A nossa paciência, caro vizinho, está nos últimos grãos. Desculpe-me, mas eu tenho de lhe fazer esta autocrítica.

O homem do nono andar aceitou a queixa, razão dos incómodos sonoros. E explicou, apontando a menina: a pilosa é a minha sobrinha. Mas tem que ser, desculpe. A farinha toda moemos aqui em casa. Não pilamos por gosto."

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