segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Canteiro de palavras ( XXXVII ) - Escrever *

"Escrever! Poder escrever! Isso significa o longo divagar diante da folha em branco, o garatujar inconsciente, as brincadeiras do aparo que gira à volta de um pingo de tinta, que mordisca a palavra imperfeita, a risca, a eriça de setazinhas, a adorna de antenas e de patas, até ela perder o seu aspecto legível de palavra, metamorfoseada em insecto fantástico, voando como borboleta-fada ...

Escrever ... É o olhar fixo, hipnotizado pelo reflexo da janela no tinteiro de prata, a febre divina que sobe às faces, à fronte, enquanto uma morte bem-aventurada gela no papel a mão que escreve. Significa também o esquecimento das horas, a preguiça no canto do divã, a orgia de invenção de onde se sai exausto, embrutecido, mas já recompensado e portador de tesouros que se transmitem lentamente à folha virgem, no pequeno círculo de luz que se abriga sob o candeeiro.

Escrever! Lançar com ira toda a sinceridade de nós mesmos no papel tentador, lançá-la depressa, tão depressa que, às vezes, a mão luta e resiste, assoberbada, exausta pelo deus impaciente que a guia ... e encontrar no dia seguinte, em lugar do raminho de ouro miraculosamente desabrochado numa hora flamejante, uma silva seca, uma flor abortada ...

Escrever! Prazer e sofrimento de ociosos! Escrever!... Sinto, de longe em longe, a necessária, forte como a sede de Verão, de anotar, de escrever ... Pego na caneta, para iniciar o jogo perigoso e falaz, para aprender a fixar, sob a pena dupla e dúctil, o cambiante, o fugaz, o apaixonante adjectivo ... Mas é apenas uma crise breve, o prurido de uma cicatriz ...

É necessário muito tempo para escrever! E, de resto, eu não sou Balzac ..."

* Colette in A Vagabunda


















Colette nasceu em Saint-Sauver-en-Puisaye, em 1873, e morreu em Paris em 1954, onde, no Cemitério do Père-Lachaise, há duas dezenas de anos, estivemos à conversa, enquanto a neve, lembro-me bem, no silêncio grandiloquente das campas, emoldurava quantos, ilustres, por ali tinham ficado na primeira fila da Sala dos Mortos, à espera doutros convidados, para a Ceia Final sem data marcada.

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