quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XII)


ENTREVISTA com Celina Veiga de Oliveira (última parte)


Face às mudanças de 1999, quais são as expectativas dos macaenses?

Alguns estão muito apreensivos e outros, curiosamente, estão optimistas e serenos. Sabe porquê?... Eu sou professora no Instituto Politécnico, dou aulas à noite, e tenho alunos adultos, alunos que estão a tirar o bacharelato. E faço-lhes muitas vezes essas perguntas. Gosto de ouvir o que eles dizem. O que eu recolho é o seguinte: há chineses e há macaenses, naturais de Macau, que têm medo de 1999, porque têm substancialmente medo dos chineses de Pequim, que, em seu entender, vêm de uma outra galáxia, digamos assim. E esses chineses de Pequim quase todos falam um português como o nosso... Para ver como eles se preparam, de facto, para as situações. Nós não. Os portugueses é "tudo em cima do joelho..."

Curiosamente, há outros que não têm medo. Já estão inseridos na comunidade chinesa, não têm valores económicos nenhuns especiais, não têm nada a perder, também não têm dinheiro para sair daqui... Aceitam a situação com calma e estão, de certa forma, confiantes de que a China, não por respeito tradicional pelas normas, que é muito próprio da sua maneira de estar, mas, sobretudo, porque Macau vai servir como uma espécie de símbolo.

As relações actuais entre a China e a Inglaterra, em relação a Hong Kong, são muito más, ao contrário do que sucede com o governador de Macau e também com o governo de Portugal e da China. As relações entre o governador Rocha Vieira e as autoridades chinesas têm-se pautado por uma grande serenidade. A minha visão, aliás, não coincide com a visão de alguns portugueses que acham que o governador se submete muito às exigências... Eu acho que não. Acho que ele vai conseguindo fazer o que quer, com uma estratégia muito própria.

Mas, no que nos respeita, como, eventualmente, poderá haver problemas com a transferência de Hong Kong - Hong Kong é um monstro económico muito grande - a China não tem interesse nenhum em que Macau sirva de mau exemplo, porque se assim viesse a acontecer corria o risco de complicar outros processos...

Os grandes organismos internacionais estão atentos. É mais um símbolo do que outra coisa, porque Macau é pequeno...

Apesar de tudo, já não são 16 km2...

Agora com os aterros... Nos últimos 10 anos, em especial. Com pena minha de ter desaparecido a linda baía da Praia Grande. No princípio do século, não agora...

Como é que a comunidade católica, no meio de budismos, etc, vai sobreviver, ou sobrevive,

A comunidade católica sobreviveu sempre e tem sobrevivido num clima de coexistência religiosa.

É isso que é a grande maravilha de Macau. Isto é, há budistas?!... Sim, senhor. Também haverá por aí alguns sintoistas japoneses?!... Sim, senhor. Há toístas?!... Sim, senhor. Há católicos?!...Sim, senhor. Há cristão não católicos?!... Sim, senhor. Tudo bem. É evidente que o peso, a força dominante de Macau, é o catolicismo em termos ocidentais. Mas tudo numa grande base de freternidade e coexistência.

Actualmente a igreja sofre daquilo a que nós demos o nome de processo de localização. O bispo é chinês, é D. Domingos Lam. Estudou no seminário português, fala português. Há uma espécie de substituição dos poucos - já não há muitos... - padres portugueses que têm regressado à metrópole, por padres chineses, que é para estarem mais em contacto com a população depois de 1999. Mas eu acho que a igreja tem essa grande virtude, ao longo dedos seus 2000 anos de existência. Uma capacidade de adaptação notável!

Prédios de 20/30 andares desocupados... Como é que é?...

Vou dizer-lhe o que oiço ao meu marido: parece que há aí, em zonas determinadas, prédios que estão completamente desabitados. Há quem fale numa crise da construção civil decorrente desse facto e há quem diga que estão construídos à espera de Macau se transformar naquilo, em termos populacionais, que há quem preveja... Será que é nessa perspectiva que se constrói tanta coisa aqui?...

Gostava, entretanto, de lhe falar de Ho Hin, que é uma grande figura da comunidade chinesa, que morreu em 1983 (?) e está sepultado no cemitério português (de S. Miguel Arcanjo).

Ho Hin era chinês, era o "leader" da comunidade chinesa em Macau. Foi grande e profundo nosso amigo. Resolvia conflitos entre portugueses e chineses.

Como se sabe, no tempo de Salazar, não havia relações diplomáticas entre Portugal e a China, o que era muito mau para Macau. E houve a Revolução Cultural na China que teve reflexos perigosos aqui em Macau, em 1966, no célebre 1, 2, 3, isto é, no dia 3 do 12, portanto, 1, 2, 3... E faziam-se leituras do Livro Vermelho. O próprio governador - coitado! - foi obrigado a situações humilhantes. Houve, então, dois homens que, na penumbra, foram grandes negociadores entre Portugal (Macau) e a China: o Dr. Carlos Assunção, de que já falámos, e o sr. Ho Hin, pai do actual vice-presidente da Assembleia Legislativa, que era muito amigo dos portugueses e que conseguiu encontrar uma plataforma de entendimento e uma situação que agradou às duas partes. E os portugueses continuaram cá mais algum tempo... Etc. A situação apaziguou-se.

O filho dele, Edmundo Ho, é uma figura com tanto valor na comunidade chinesa que há quem diga que, depois de 1999, será o governador.*

Numa paragem de autocarro está uma fila de macaenses e chega um chinês e passa à frente de todos... O que é que isso quer dizer?...

Aqui fazem isso em qualquer altura... O povo chinês aqui desta zona do sul (em Pequim não verifico isso...) não é disciplinado, mas, em Hong Kong, curiosamente, devido à eficácia administrativa dos ingleses, que não se pode comparar com a nossa (somos uns aprendizes de feiticeiro ao pé deles. Não é que eu goste dos ingleses...), isso não se verifica. Eles respeitam a bicha, foram ensinados, porque essas coisas ensinam-se de pequenino...Aqui, em Macau, era uma coisa que me irritava muito... Agora já estou habituada... Não fazem por mal, nem por instinto de superioridade... Mas se nós lhes dissermos: " faz favor, não pode...", eles vão para o sítio donde vieram e não reagem mal... Não são nada agressivos, constituem um povo admirável!...

Para terminar, imagine-se numa aula e que a sua assembleia é de jovens portugueses. Estamos à beira de 1999...
O que é que diria aos seus alunos?...

Estou a dar aulas no Instituto Politécnico, como referi, e, portanto, os meus alunos são, praticamente, chineses que estão a aprender português, para serem interpretes-tradutores. Não vou enfrentar essa situação de estar com uma assembleia de portugueses. Poderei, quando muito, ter uma assembleia de macaenses, isto é, de portugueses de Macau. Vou imaginar...

Já faço isso agora: tenho sempre uma palavra de optimismo, porque lhes costumo dizer ( sou professora de história de Macau) é que a história de Macau não vai acabar em 1999, o que vai acabar é um ciclo, mas vai iniciar-se outro que não sabemos se vai ser melhor, se vai ser pior, o que vai ser é, necessariamente, diferente.

E um ciclo diferente porque é um ciclo histórico que já não conta com a administração portuguesa. A administração vai ser chinesa, com órgãos próprios daqui de Macau. A minha mensagem , até porque sinto um bocadinho isso, é, eu não poderia dizer outra coisa numa aula, é de optimismo.

Diria o mesmo a uma assembleia de chineses?...

Absolutamente. Agora se, em vez de estar a falar consigo em Macau, estivesse na Missão de Macau, em Portugal, poderia pôr um bocadinho mais a nú aquilo que sinto - e eu não tenho medo de 99!... - vou-me embora porque não posso cá ficar...

Há algum aspecto que gostasse de referir e que não lhe tenha perguntado? Por exemplo, do ponto de vista histórico...

O princípio de Macau: porque é que Macau se afirmou, quando houve outra feitorias aqui nesta zona que não vingaram?!... Muito por causa do comércio que dava um lucro espectacular aos portugueses. Nós íamos para o Japão vender a seda e trazíamos a prata... Isso deu um incremento grande e o século XVI (fins) e parte do século XVII foram os momentos grandes da nossa presença no Oriente.

Deixámos marcas aqui, como se vê, mas também no Japão, que ainda hoje comove qualquer português que lá vá, quando verifica a existência de monumentos feitos pelos japoneses, sobretudo, aos nossos missionários jesuítas e navegadores.

Tem alguma referência da nossa presença na Austrália? **

Não me parece minimamente bizarra a versão do senhor McIntire porque, desde logo, Timor não é muito longe... Por outro lado, como disse Boxer (e Boxer é insuspeito porque é inglês, não é português...), os portugueses no século XVI tinham uma dinâmica marítima tão grande que, naquela altura, era possível encontrar-se um barco português em qualquer parte... A dinâmica comercial era enorme, o aventureirismo era também grande, esses homens sem medo eram muitos... Portanto, era natural que qualquer barco nosso pudesse ter chegado a uma zona do litoral australiano. ***

Como é que um português que está aqui radicado e/ou um chinês vê o português de Portugal?
É uma imagem que se tem alterado de acordo com as épocas e as conjunturas. Por exemplo, antigamente, o macaense olhava para o português continental como alguém com quem gostaria de se assimilar. O chinês não tinha grande relacionamento com o português de Portugal. A ligação que havia era uma ligação administrativa, os professores representavam o poder burocrático, as pessoas a quem era necessário pedir uma autorização para isto e para aquilo...

Hoje em dia a situação alterou-se um bocadinho: os macaenses estão muito identificados com os portugueses de Portugal, têm uma casa em Portugal... Aqueles que pretendem fazer vida em Portugal têm uma visão mais pacífica dos portugueses continentais.

Os chineses - que é o que nos interessa mais, uma vez que os macaenses têm ligações sanguíneas e afectivas ao nosso país - acham que os portugueses de Portugal são muito afáveis, simpáticos...

Mesmo os que estão aqui?...

Sim, sim!... Pela minha parte, tenho um grande amigo que é chinês, de Pequim, professor universitário, e eu pergunto-lhe muitas vezes: "diga-me lá o que é que você acha dos portugueses..." E ele responde-me: "os portugueses são simpáticos..." Gosta da comida portuguesa. Acha que nós somos "almas lavadas..."

Mas aqui a comunidade portuguesa não é tão fácil como isso...

Não se conseguem arranjar grandes amizades... Eu acho que os nossos grandes amigos são ainda aqueles que ficaram em Portugal!...

Não falámos da língua portuguesa... Como é que é nesta parte do mundo?

A língua portuguesa nunca teve em Macau expressão significativa. A história explica porquê. Mas até a situação do poder repartido: isto não era só chinês, não era só português. Também tem a ver com a tal coexistência das duas comunidades no mesmo espaço geográfico, mas de costas voltadas uma para a outra. Talvez isso explique porque é que o português não se disseminou. Mas a Declaração Conjunta consagra o dualismo linguístico. A partir de 99, como já é agora, quer o chinês, quer o português são línguas oficiais.

Mas eu penso que o peso do português depois de 99 vai cair. Nas repartições públicas poderá ainda haver funcionários que falem português, mas... Penso que a nossa língua vai ser uma língua de cultura. O que vai permanecer mais marcadamente português julgo que não vai ser a língua, vai ser a comida, porque os chineses gostam muito da nossa culinária e há aí uma série de restaurantes que têm dado bom resultado...

Do que é que eles gostam mais?

Gostam imenso de bacalhau... Tal como eu... Li, aliás, há dias, uma referência que o Primeiro-Ministro, Eng. Guterres, não gosta de bacalhau e eu pensei: "encontrei-lhe um pormenor que faz dele, de facto, uma percentagem pequenina de menos português do que eu..."

* e foi...

** foi para lá que viajei a seguir. Ver livro "Entre Vistas nos Arredores das Montanhas Azuis"

*** recebi hoje mesmo um PDF do Gabinete da Ministra da Cultura a sinalizar a recepção do reparo que fiz a propósito deste assunto. Fiquei satisfeito. Talvez vá mexer...

A próxima conversa será com o Dr. Senna Fernandes. Espero por si. Não se assuste com o tamanho da prosa...Na imensidão do que a História já contou, e vai, por certo, contar, estas páginas NET não passam, de facto, de "Subsídios para..." Podem é não ter "fans" ou serem apenas interessantes para...para estrangeiros...Para os tais que, por exemplo, não têm a certeza de quem foi o achador da Austrália...

Que Deus e Buda ajudem os leitores.

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