Era a minha primeira saída de Portugal, das muitas de que este blogue agora é já registo.
Mas existe, feita "na hora", a síntese manuscrita do que foi essa "primeira vez"...
Exactamente, com partida no dia 29 de Setembro de 1963.
Partilho-a convosco, no essencial, sobretudo, pelo eventual pitoresco que possa haver num relato ainda a cheirar ao que aconteceu... Na primeira pessoa.
"Eram 14 horas e 45. Lisboa, Sta. Apolónia. SUD.
No meu compartimento dois ingleses, uma inglesa e uma portuguesa de "ar duvidoso". Pessoalmente, emoção mal contida.
Os ingleses oferecem-me um cigarro e começamos a trocar impressões, cada um com o inglês que sabia...
Gostam de Portugal, mas dizem que é tudo muito caro. Vêm do Canadá.
Oiço-os dizer que sou "seu jovem companheiro e que viajarei sob a sua protecção..."
Oferecem-me uma caixa de pastilhas elásticas.
Parámos em Pombal para mudar a máquina do combóio para uma Diesel.
Entretanto, um funcionário da PIDE veio pedir-me o passaporte e, pensando que eu era funcionário da Imprensa Nacional, pergunta-me pela autorização do Ministério.
Viajo na 2ª carruagem de 2ª classe, compartimento 7, lugar 25.
A "rapariga duvidosa" lê "Vida Moral" (I parte - A Medicina e a Higiene; II parte - A Vida Sexual). "Ainda não deve ter chegado à parte sexual. Vai nas primeiras páginas" - anotei.
Entretanto, a inglesa lê um livro policial.
Os ingleses (canadianos, afinal) convidaram-me para jantar. Como disse que não, perguntaram-me se ía passar fome e eu expliquei que tinha trazido farnel de casa...
Um deles anda a dar a volta ao mundo.
Chegámos às 21.15 a Vilar Formoso. Boa noite! Espanha à vista.
Os funcionários da alfândega espanhola não quiseram ver nada.
Em Salamanca entrou um casal espanhol com um bebé. Quando o combóio partiu, ele benzeu-se e a mulher deitou-se sobre as minha costas. Gostei. Está frio.
Não sei se dormi... Às 7.30 o sol começa a romper. Atravesso terras de "nuestros hermanos". S. Sebastian às 9.12. Irun pouco depois. Adeus Espanha!
Cheguei a Hendaye sem complicações alfandegárias. Nem viram a bagagem.
Um português que vai para a Holanda tirou-me uma fotografia.
Estou no café em frente da estação de Hendaya e está comigo um português que vai para França ganhar, ou ver se ganha, a vida. Dirige-se a Paris à procura de...de um primo.
Voltei a encontrar o inglês, que afinal é canadiano, que queria tomar banho e não o entendiam. Acompanhei-o a dois hotéis, mas afinal não havia banhos... Convidou-me para tomar um café. É proprietário de um barco de pesca no mar alto (Alaska). Dei-lhe um cartão meu. Ele é o Peter.
O combóio para Genève partiu às 17.06 - hora exacta. Vai um padre, uma "gralha" e um operário espanhol no compartimento em que sigo.
O padre sabe muitas línguas. A "gralha" sabe francês e a sua língua (espanhol), naturalmente.
Pela janela, vejo uma velhota a ser levada num carrinho de bagagem por um funcionário da estação.
Chegámos a Pau às 19.30. Vejo uma colina encimada com uma cruz. Tudo iluminado. É Lourdes. Na estação há mantas e almofadas à venda num carrinho. O padre pergunta-me, com ar satírico, para que é...
Às 20.20 jantei três sandes e três bananas - ainda de Lisboa. Deitei-me no banco às 21.15. Dormi um pouco... Depois de horas e horas sem descanso.
Um bagageiro embirrou comigo e quis pôr malas por cima das minhas e do padre. Recusámos. Eu primeiro, depois o padre.
Às 2.40 do dia 1/10 vejo-me na cidade de Nimes. Acordei há pouco. O relógio ora adianta, ora atrasa.
Vienne às 5.30. Nem um papel no chão.
Lyon-Perrache às 5.55. O revisor não aparece. Só aqui veio uma vez. Entraram mais pessoas e nada...
O que vejo ao longe são casas castanhas (madeira?) enquadradas na verdura.
Debato-me entre o sono e a vontade de ver tudo bem.
Adeus França! Bom dia Suiça! A alfândega não quis ver nada.
Desejei fazer a barba em Genève, mas não tive tempo.
Entretanto, à minha frente tenho uma jovem suiça. Loira como as imagino, em Portugal. Afinal, o "frio" que tinha era nervoso. O tempo está óptimo!
Paragem em Nyon às 9.21. A meu lado sentou-se agora uma loira que deve ser da Suiça alemã - fala alemão.
Pormenor de um óleo de Emília Alves |
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