domingo, 31 de outubro de 2010

1963 - Notas soltas de uma viagem: a cama de pau

Tinha eu 25 anos (1963) quando, por sugestão do "meu chefe", o "Diário de Notícias", posta de lado a hipótese de viajar na PANAIR (falida (?) entretanto), me mandou comprar um assento na segunda classe do SUD sem direito a cama e me pôs a caminho de Zurique, primeiro (coisa, apesar de tudo, única no meio em que eu "funcionava" no jornal), depois Paris, ao encontro do eng. Brás de Oliveira que, entretanto, seguira por via aérea dias antes.

Era a minha primeira saída de Portugal, das muitas de que este blogue agora é já registo.

Mas existe, feita "na hora", a síntese manuscrita do que foi essa "primeira vez"...

Exactamente, com partida no dia 29 de Setembro de 1963.

Partilho-a convosco, no essencial, sobretudo, pelo eventual pitoresco que possa haver num relato ainda a cheirar ao que aconteceu... Na primeira pessoa.


"Eram 14 horas e 45. Lisboa, Sta. Apolónia. SUD.

No meu compartimento dois ingleses, uma inglesa e uma portuguesa de "ar duvidoso". Pessoalmente, emoção mal contida.

Os ingleses oferecem-me um cigarro e começamos a trocar impressões, cada um com o inglês que sabia...

Gostam de Portugal, mas dizem que é tudo muito caro. Vêm do Canadá.

Oiço-os dizer que sou "seu jovem companheiro e que viajarei sob a sua protecção..."

Oferecem-me uma caixa de pastilhas elásticas.

Parámos em Pombal para mudar a máquina do combóio para uma Diesel.

Entretanto, um funcionário da PIDE veio pedir-me o passaporte e, pensando que eu era funcionário da Imprensa Nacional, pergunta-me pela autorização do Ministério.

Viajo na 2ª carruagem de 2ª classe, compartimento 7, lugar 25.

A "rapariga duvidosa" lê "Vida Moral" (I parte - A Medicina e a Higiene; II parte - A Vida Sexual). "Ainda não deve ter chegado à parte sexual. Vai nas primeiras páginas" - anotei.

Entretanto, a inglesa lê um livro policial.

Os ingleses (canadianos, afinal) convidaram-me para jantar. Como disse que não, perguntaram-me se ía passar fome e eu expliquei que tinha trazido farnel de casa...

Um deles anda a dar a volta ao mundo.

Chegámos às 21.15 a Vilar Formoso. Boa noite! Espanha à vista.

Os funcionários da alfândega espanhola não quiseram ver nada.

Em Salamanca entrou um casal espanhol com um bebé. Quando o combóio partiu, ele benzeu-se e a mulher deitou-se sobre as minha costas. Gostei. Está frio.

Não sei se dormi... Às 7.30 o sol começa a romper. Atravesso terras de "nuestros hermanos". S. Sebastian às 9.12. Irun pouco depois. Adeus Espanha!

Cheguei a Hendaye sem complicações alfandegárias. Nem viram a bagagem.

Um português que vai para a Holanda tirou-me uma fotografia.

Estou no café em frente da estação de Hendaya e está comigo um português que vai para França ganhar, ou ver se ganha, a vida. Dirige-se a Paris à procura de...de um primo.

Voltei a encontrar o inglês, que afinal é canadiano, que queria tomar banho e não o entendiam. Acompanhei-o a dois hotéis, mas afinal não havia banhos... Convidou-me para tomar um café. É proprietário de um barco de pesca no mar alto (Alaska). Dei-lhe um cartão meu. Ele é o Peter.

O combóio para Genève partiu às 17.06 - hora exacta. Vai um padre, uma "gralha" e um operário espanhol no compartimento em que sigo.

O padre sabe muitas línguas. A "gralha" sabe francês e a sua língua (espanhol), naturalmente.

Pela janela, vejo uma velhota a ser levada num carrinho de bagagem por um funcionário da estação.

Chegámos a Pau às 19.30. Vejo uma colina encimada com uma cruz. Tudo iluminado. É Lourdes. Na estação há mantas e almofadas à venda num carrinho. O padre pergunta-me, com ar satírico, para que é...

Às 20.20 jantei três sandes e três bananas - ainda de Lisboa. Deitei-me no banco às 21.15. Dormi um pouco... Depois de horas e horas sem descanso.

Um bagageiro embirrou comigo e quis pôr malas por cima das minhas e do padre. Recusámos. Eu primeiro, depois o padre.

Às 2.40 do dia 1/10 vejo-me na cidade de Nimes. Acordei há pouco. O relógio ora adianta, ora atrasa.

Vienne às 5.30. Nem um papel no chão.

Lyon-Perrache às 5.55. O revisor não aparece. Só aqui veio uma vez. Entraram mais pessoas e nada...

O que vejo ao longe são casas castanhas (madeira?) enquadradas na verdura.

Debato-me entre o sono e a vontade de ver tudo bem.

Adeus França! Bom dia Suiça! A alfândega não quis ver nada.

Desejei fazer a barba em Genève, mas não tive tempo.

Entretanto, à minha frente tenho uma jovem suiça. Loira como as imagino, em Portugal. Afinal, o "frio" que tinha era nervoso. O tempo está óptimo!

Paragem em Nyon às 9.21. A meu lado sentou-se agora uma loira que deve ser da Suiça alemã - fala alemão.


Pormenor de um óleo de Emília Alves
 Paragem em Morges às 9.37. Quando o combóio chega ou parte, toca uma campaínha com um som forte. À minha frente, a loira sorri de quando em quando. Não sei se de mim se...para mim... Com barba de dois dias.

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