terça-feira, 19 de outubro de 2010

Palavras em saldo

Foto Mónica Ponce
12º DIA

in "Deus lhe pague", de Joracy Camargo *

Alô, Brasil generoso, que, de vez em quando, apareces a ler-me!..."Confessam-me" as estatísticas.


"... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

OUTRO

- Ainda não fiz nada, velhinho. Tenho cigarros. Aceitas um?

MENDIGO

- São bons?

- Hoje, até as pontas que consegui apanhar são de cigarros ordinários! (tira do bolso uma latinha cheia de pontas de cigarros, abre-a e oferece)

- Muito obrigado. Não fumo cigarros ordinários. Quer um charuto? (tira-o do bolso).

(Aceitando espantado) Olá!

- É Havana! Tenho muitos! Custam 10$00 cada um.

- Aceito, porque nunca tive jeito para roubar...

- Nem eu.

- Não foram roubados?

- Foram comprados. Ainda não sou ladrão...

- Desculpe. É que...

- Não é preciso pedir desculpas. Não sou ladrão, mas podia sê-lo. É um direito que me assiste.

(sentando-se na escada) Acha?

- Acho, mas sempre preferi trabalhar. Como trabalhar nem sempre é possível, revolvi pedir esmola, antes que fosse obrigado a roubar. Pedir dá menos trabalho.

- E é por isso que o senhor pede?

- Só. O senhor conhece a história do mundo?

- Não.

- Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?

- Eu não fui...

- Não foi ninguém. Os espertalhões, no princípio do mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a Justiça e a Polícia...

- Para quê?

- Para prender e processar os que vieram depois. Hoje, quem se apropriar das coisas, é processado pelo crime de apropriação indébita, porquê?  Porque eles resolveram que as coisas lhes pertencessem...

- Mas quem foi que deu?

- Ninguém. Pergunte ao dono de uma faixa de terra na Avenida Atlântica se ele sabe explicar porque razão aquela faixa é dele...

- Ora! É fácil. Ele dirá que comprou ao antigo dono.

- E o antigo dono?

- Comprou a outro.

- E o outro?

- De outro.

- Estoutro?

- Do primeiro dono.

- E o primeiro dono, comprou de quem?

- De ninguém. Tomou conta.

- Com que direito?

- Isso é que eu não sei.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

- Ora!... Quem é que precisa de um mendigo?

- Todos! Eles precisam muito mais de nós do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: "Quem dá aos pobres, empresta a Deus", confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus... Não há generosidade na esmola: há interesse (...).

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... "

* recordo a notável interpretação de Procópio Ferreira, em Lisboa, no século passado...

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