Foto Mónica Ponce |
in "Deus lhe pague", de Joracy Camargo *
Alô, Brasil generoso, que, de vez em quando, apareces a ler-me!..."Confessam-me" as estatísticas.
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OUTRO
- Ainda não fiz nada, velhinho. Tenho cigarros. Aceitas um?
MENDIGO
- São bons?
- Hoje, até as pontas que consegui apanhar são de cigarros ordinários! (tira do bolso uma latinha cheia de pontas de cigarros, abre-a e oferece)
- Muito obrigado. Não fumo cigarros ordinários. Quer um charuto? (tira-o do bolso).
(Aceitando espantado) Olá!
- É Havana! Tenho muitos! Custam 10$00 cada um.
- Aceito, porque nunca tive jeito para roubar...
- Nem eu.
- Não foram roubados?
- Foram comprados. Ainda não sou ladrão...
- Desculpe. É que...
- Não é preciso pedir desculpas. Não sou ladrão, mas podia sê-lo. É um direito que me assiste.
(sentando-se na escada) Acha?
- Acho, mas sempre preferi trabalhar. Como trabalhar nem sempre é possível, revolvi pedir esmola, antes que fosse obrigado a roubar. Pedir dá menos trabalho.
- E é por isso que o senhor pede?
- Só. O senhor conhece a história do mundo?
- Não.
- Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?
- Eu não fui...
- Não foi ninguém. Os espertalhões, no princípio do mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a Justiça e a Polícia...
- Para quê?
- Para prender e processar os que vieram depois. Hoje, quem se apropriar das coisas, é processado pelo crime de apropriação indébita, porquê? Porque eles resolveram que as coisas lhes pertencessem...
- Mas quem foi que deu?
- Ninguém. Pergunte ao dono de uma faixa de terra na Avenida Atlântica se ele sabe explicar porque razão aquela faixa é dele...
- Ora! É fácil. Ele dirá que comprou ao antigo dono.
- E o antigo dono?
- Comprou a outro.
- E o outro?
- De outro.
- Estoutro?
- Do primeiro dono.
- E o primeiro dono, comprou de quem?
- De ninguém. Tomou conta.
- Com que direito?
- Isso é que eu não sei.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
- Ora!... Quem é que precisa de um mendigo?
- Todos! Eles precisam muito mais de nós do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: "Quem dá aos pobres, empresta a Deus", confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus... Não há generosidade na esmola: há interesse (...).
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... "
* recordo a notável interpretação de Procópio Ferreira, em Lisboa, no século passado...
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