quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Canteiro de palavras ( IV )

"Castro Verde merece o nome que tem. Está num alto e não lhe faltam verduras para aliviar os olhos das sequidões da charneca. Se só de monumentos cuidasse hoje o viajante, mal lhe valeria a pena de vir de tão longe para o pouco que verá, valendo embora tanto atravessar mais de quarenta quilómetros de searas ceifadas.


Está aberta a Igreja das Chagas do Salvador, que tem para mostrar ingénuos quadros com cenas guerreiras e um bom silhar de azulejos, mas a matriz, a que chamam aqui basílica real, não.


O viajante desespera-se. Vai à procura do padre que mora em tal e tal sítio, uma casa toda cercada de parreiras, engana-se uma vez e duas, e enfim dá com a residência, cá estão as parreiras. O padre é que não está.O viajante dá volta à casa, vai aos fundos do quintal, nem cão ladra nem gato sopra. Regressa zangado à igreja, abana-lhe as fortíssimas portas (é uma imensa construção, e diz-lhe que lá dentro há uns painéis de azulejos que representam episódios da batalha de Ourique), mas o santo lugar não se comove.


Estivessem estas coisas convenientemente organizadas, e, faltando o padre, viria um anjo à porta, abanando as asas para se refrescar, e perguntaria: "Que queres?" E o viajante: "Venho ver os azulejos." Tornava o anjo: "És crente?" E o viajante, em confissão: "Não, não sou. Tem importância para os azulejos?" E o anjo: "Não tem nenhuma. Podes entrar" Assim é que devia ser. Quando o padre regressasse, o anjo daria contas da sua guarda: "Esteve aí um viajante para ver os azulejos. Deixei-o entrar. Pareceu-me boa pessoa." E o padre, para dizer alguma coisa: "Era crente?" Responderia o anjo, que não gosta de mentir: "Era." Num mundo assim, pensa o viajante, não ficaria um azulejo por ver."

in "Viagem a Portugal", de José Saramago

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