Austrália 1998 - De uma entrevista com Luís José Abreu, ex-deportado em Timor, ex-vendedor de estatuetas, ex-calceteiro, ex-profissional de tudo um pouco, pintor "naif", em Sydney
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Fui para Timor como deportado social, com os primeiros proscritos da Ditadura Militar. Comigo foram intelectuais, operários manuais, cultos e não cultos, e até mesmo, creio, alguns monárquicos que eram contra a Ditadura.
Qual era a sua profissão quando o deportaram para Timor?
Antes de ir, exerci diversas profissões, entre as quais as de estucador e vendedor, por conta própria, de estatuetas... Por conta própria, repito, que eu nunca dei a ganhar nada a patrão nenhum... Preferi trabalhar sem intermediários!...
Porque é que a Ditadura o achou um cidadão incómodo?
É muito fácil de explicar: era operário comunista. Naquele tempo existia a Confederação Geral do Trabalho, que foi criada em Coimbra, depois da União Operária Nacional...
Em que ano?...
Nos anos 19/20...
Quem é que estava no poder?
Os primeiros repúblicanos. Assisti ao 5 de Outubro de 1910. Meu pai morreu pela República!...
O que representou para si o 5 de Outubro?
Quando se deu o 5de Outubro eu ainda andava na escola primária, era novo... Contudo, acho que o 5 de Outubro se traduziu numa realidade inevitável, porque a monarquia estava em decadência e o país perto da bancarrota. O Estado não tinha dinheiro e enquanto os políticos monárquicos não se entendiam, o Partido Republicano Português - primeiro partido republicano criado em Portugal congregava personalidades de alta
grandeza cultural, como o Dr. Afonso Costa, António José de Almeida, e tantos outros intelectuais.
Em que ano o deportaram para Timor?
Logo a seguir à vitória da Ditadura, em 1927.
Quanto tempo esteve deportado?
15 anos!!!
Fale-me um pouco desse período...
A Ditadura matou alguns deportados. Foi a minha habilidade que me salvou. Eles precisavam de mim, porque pouco ou nada havia em Timor.
Timor era uma terra abandonada?
Sim, naquele tempo, Timor não tinha nada, absolutamente nada. Quando lá chegámos, fomos levados para uma prisão militar, mas era como se estivessemos livres... O governador (esquece-me o nome) era um sidonista...
Quantos anos tem, senhor Abreu?
Noventa e tal... A caminho dos 100!... Nasci em 1899, mas oficialmente consta 1902. Fui baptizado na igreja de S. Domingos, em Lisboa. Meu pai esperava o advento da República para me "baptizar ... civilmente", mas a República perdeu o 31 de Janeiro, e por aí fora, perderam-se outros momentos republicanos. Então o meu pai resolveu baptizar-me em 1902.
É natural de ...
De Lisboa. Sou alfacinha de gema, nascido na rua da Palma e criado na rua dos Douradores.
Continue, senhor Abreu, a falar-me da deportação em Timor...
Fomos para Timor para morrer!... O governador de Timor era o Teófilo Duarte, que, como político, estava a soldo da Ditadura, mas que nos tratou correctamente. Quando chegámos tínhamos roupa, tínhamos um colchão, tínhamos cama... Tivemos todo o auxílio. Não podemos negá-lo.
O que era Timor nessa época?
Timor era uma coisa muito estapafúrdia... Uma coisa que, realmente, causava uma certa dor àqueles que amavam, de facto, a liberdade. Não existia a consciência de povo. Os homens, na sua maioria, viviam nús, quase só com um langotim a tapar as partes... Eram levados para o trabalho nas estradas sem ganhar qualquer vencimento e, muitas vezes, ainda tinham que oferecer um porco ou uma galinha aos capatazes, europeus ou maiorais do território.
Quando é que terminou a sua deportação e o que é que fez a seguir?
A deportação manteve-se, como disse, durante 15 anos e terminou quando as Nações Unidas, depois da Guerra, impuseram ao governo de Salazar o respectivo fim e o de prisões como a do Tarrafal.
Para onde é que foram?
Alguns partiram para Portugal. Eu estava na Austrália, porque fiz parte dos comandos contra os japoneses.
Veio para a Austrália?...
Vim para a Austrália num barco de guerra... Estive em Darwin, em Melbourne e em Sydney, uns quatro para cinco anos. A Austrália nesse tempo, dominada pelos ingleses, era racista até à medula dos ossos... A certa altura, tentei ficar aqui, mas eles disseram-me: you stop in Austrália, all right, but your wife black, not stop in Austrália...
???
A minha mulher é timorense. Resolvi partir e fui de novo, ainda durante a Ditadura em Portugal, para Timor, mas como deportado...
Fazer o quê?...
Trabalhar nas Obras Públicas, que me requisitaram para restaurar e fazer uma certas igrejas... Um paradoxo, realmente: eu, que nunca segui religião nenhuma, a fazer igrejas... Embora, como disse um velho democrata meu amigo, "não faz mal, é mais uma casa que fica em Timor.."
E, em serviço, esteve depois quantos anos no território?
Fui para lá em 1949 e estive até 1974...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ..."
in "ENTRE VISTAS nos Arredores das Montanhas Azuis", de M.A.
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Boa noite,cheguei a este post através de uma pesquisa do google por deportados sociais em Timor.soube recentemente que o meu bisavô foi um dos deportados em 1927 e achei interessante ler as palavras de alguém que esteve com ele.Obrigada!
ResponderEliminarSónia Estrela
scestrela@gmail.com
Minha Senhora, não imagina a alegria que a simpatia do seu comentário me deu... Bem-haja! Acrescento-lhe que foi das entrevistas que mais prazer me proporcionou. Aliás, está publicada no meu livro ENTRE VISTAS NOS ARREDORES DAS MONTANHAS AZUIS, apoiado, nomeadamente, pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Câmara Municipal de Loures e Fundação Oriente.
ResponderEliminarEspero que possa dar-me a honra de passar a ser minha "visita" na RUA a que todo me dou - como se estivesse à conversa num banco, num banco de jardim, claro. Os melhores cumprimentos.
Afinal, Sónia Estrela é bisneta de Jacinto Estrela que foi deportado para Timor com o senhor Abreu, em 1927. Isto é, reforçam-se laços.
ResponderEliminarObrigado pela precisão.
Bom dia,
ResponderEliminarO meu nome é Madalena salvação Barreto e sou historiadora. Neste momento ando a preparar a minha tese de mestrado que pretende precisamente retratar a vida dos senhores que foram deportados para Timor em 1927.
Gostaria de conversar um bocadinho com o Sr. Marcial sobre este assunto.
Deixo o meu email: madalenasbarreto@gmail.com
Muito obrigada pela atenção,
Madalena Salvação Barreto
Terei o maior prazer. No entanto, o que sei desse assunto é o que está no meu livro atrás citado. Irei fotografar a entrevista que me foi concedida e enviá-la em breve para o "mail" que teve a amabilidade de me indicar. Os melhores cumprimentos.
ResponderEliminarAbsolutamente fascinante esta história aqui trazida pela viva voz de um dos protagonistas do tempo que foi de deportados, em Timor. Muito obrigado. Escusado será dizer que gostaria muito de ter o livro que contém esta história, um livro perfeitamente desconhecido, para mim. Um bom sinal do muito que me falta ainda conhecer sobre um tema que me fascina tanto.
ResponderEliminarSerá que o seu autor disporá ainda de algum exemplar desse livro, para venda?
Muito obrigado, repito.
José António Cabrita
Amável! Muito obrigado pelas suas palavras. Fascinante é tudo isto ... Tenho muito gosto em lhe oferecer um dos últimos exemplares que ainda tenho.
ResponderEliminarBasta que me dê o seu contacto para combinarmos como fazer ...
Eis o meu contacto:
ResponderEliminarJosé António Cabrita
Avenida da Liberdade, lote 77
2955-114 PINHAL NOVO
E eis, igualmente, e muito mais importante, a expressão da minha gratidão.
Com os cordiais cumprimentos, do
José António Cabrita
Em princípio, o livro "ENTRE VISTAS nos arredores das Montanhas Azuis" segue amanhã por via postal.
ResponderEliminarSão 450 páginas com as entrevistas que tive oportunidade de fazer numa viagem à Austrália para registar depoimentos de portugueses ali residentes.É, pretende ser, uma amostragem. Possível graças ao patrocínio, nomeadamente, da Comissão dos Descobrimentos.
Aí encontrará a conversa com o ex-deportado de Timor a que se refere. Apelo à sua paciência, sobretudo para ler uma letra miudinha - conforme, aliás, o dinheiro que havia ... Para um trabalho, apesar de tudo, penso que inédito.Na altura e ... e ainda ...Creio.Os melhores cumprimentos.
Muito obrigado, uma vez mais. Mal receba o livro, de imediato acusarei a sua respectiva recepção.
ResponderEliminarCordialmente
José António Cabrita
Cordialmente, MA
ResponderEliminarCaro Senhor Marcial Alves,
Eliminaro seu livro, que generosamente enviou, acaba de me chegar às mãos. Fico sempre muito emocionado quando recebo um livro de oferta e, em tais ocasiões, faltam-me sempre as palavras de agradecimento mais apropriadas.
Muito obrigado, com a promessa de que aqui voltarei com os sinais que hei-de encontrar "entre vistas".
Atenciosamente,
José António Cabrita
Caro Senhor, uma afirmação eventualmente desnecessária: fiz as perguntas que quis, publiquei as respostas na integra - e "escolhi" as profissões que, à partida, poderiam ser mais "abrangentes" ...
ResponderEliminarAs autoridades portuguesas não tiveram qualquer influência nas escolhas e nos conteúdos e ... e a embaixada da Austrália, quando o presidente Sampaio foi "lá" ... deu-lhe ... este livro. Que, aliás, acabou por "viajar" com o presidente para ser conhecido por quem o quisesse ...
Este livro, para mim, é também um certo "relato" que me faltava depois de uma volta ao mundo sem Austrália, com intenção idêntica - anos antes.Atentamente, M.A.
Caro Senhor Marcial Alves,
ResponderEliminartomei a liberdade de partilhar uma pequena nota sobre o seu escrito "nos arredores das montanhas azuis", aquele que teve a imensa bondade de me oferecer, num grupo "facebookiano" que se motiva em redor de coisas timores.
Aqui: https://www.facebook.com/joseantonio.cabrita
Espero que não se importe por tal abuso. Cordialmente,o
José António Cabrita
Não consegui aceder ao endereço que me indica, mas é sempre bem acolhido quem vem por bem, como, não tenho dúvidas, é o caso.A entrevista em causa tem sido, de facto, muito lida, mas, infelizmente, já não temos o entrevistado para continuarmos a nossa conversa - que, inclusivé, se estivesse, já teria ajudado a enriquecer teses universitárias. Cordialmente, M.A.
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