sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Canteiro de palavras (XXXV) - Mundo Novo*


"( ... ) Não se pode deitar pseudo-champanhe para castas superiores em provetas da casta inferior. É teoricamente evidente. Mas é coisa que está igualmente demonstrada na vida real. O resultado da experiência de Chipre foi convincente.

- Mas que experiência foi essa? - perguntou o Selvagem.

Mustafá Mond sorriu.

- Pode-se, sem dúvida e se o quisermos, designá-la como uma experiência de reemprovetamento. A experiência começou no ano 473 de N.F.. Os Administradores fizeram evacuar da ilha de Chipre os habitantes existentes e recolonizaram-na com um lote especialmente preparado de vinte e dois mil Alfas.

Confiou-se-lhes um equipamento agrícola e industrial muito completo e deixou-se-lhes a responsabilidade de gerirem os seus negócios. Os resultados estiveram em completo acordo com todas as previsões teóricas. A terra não foi convenientemente trabalhada, houve greves em todas as fábricas, as leis valiam menos que nada, desobedeciam às ordens dadas, todas as pessoas destacadas para efectuar uma missão de categoria inferior passavam o tempo a fomentar intrigas, tentando obter trabalho de categoria mais elevada, e todas as pessoas dos cargos superiores fomentavam contra-intrigas para poderem continuar, por qualquer preço, nos lugares que ocupavam.

Em menos de seis anos estavam embrulhados numa guerra civil de primeira ordem. Quando, dos vinte e dois mil, foram mortos dezanove mil, os sobreviventes fizeram uma petição unânime aos Administradores Mundiais a fim de estes retomarem o governo da ilha. Foi o que se fez. E assim terminou a única sociedade de Alfas de que o mundo teve conhecimento.

O Selvagem soltou um profundo suspiro.

- A população óptima - continuou Mustafá Mond - deve obedecer ao modelo iceberg: oito nonos abaixo da linha de flutuação, um nono acima da linha.

- E os que estão abaixo da linha de flutuação sentem-se felizes?

- Mais felizes que os de cima. (...).

- Apesar do trabalho horrível?

- Horrível? Mas essa não é a opinião deles. Pelo contrário, agrada-lhes. É leve e de uma simplicidade infantil. Nenhum esforço excessivo nem para o espírito, nem para os músculos. Sete horas e meia de trabalho leve, nada esgotante, e depois a ração de soma, os desportos, a cópula sem restrições e o cinema perceptível. Que mais poderiam pedir? É certo - acrescentou - que poderiam pedir uma jornada de trabalho mais curta. E, bem entendido, podíamos conceder-lha. Tecnicamente, seria perfeitamente possível reduzir três ou quatro horas a jornada de trabalho das castas inferiores. Mas isso torná-las-ia mais felizes? Não, em nada. A experiência foi tentada há mais de século e meio. Toda a Irlanda foi colocada no regime da jornada de quatro horas. E qual foi o resultado? Perturbações e um acréscimo notável do consumo de soma."

* Aldous Huxley in Admirável Mundo Novo

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