quinta-feira, 13 de março de 2014

Recortes do dito e do feito (35) - Bocejo

"Estou à espera que as horas passem.Ontem deitei-me cedo e dormi tarde. E já decorreram quase vinte e quatro horas, assim com o tempo a gotejar sem que ninguém dê por isso, a não ser os cronometristas, e, mesmo esses, na maior parte dos casos, tornados autómatos de intervalos mais ou menos curtos entre ponteiros. Estou à espera que as horas passem. Não sei se hei-de bocejar, esquecendo os que trabalham, se deixar a cabeça tombar para onde ela quiser. Talvez fosse mais cómodo, aqui sentado à secretária, deixá-la cair sobre os papéis que tenho na frente, sem nada que a desperte, a não ser esta nudez que amo e que vou desvirginando, letra a letra, palavra a palavra, num arrastar de prosa a cheirar a nada. Há, contudo, nesta espécie de tédio que me percorre algo que tem o nome de amanhã. E se amanhã é dia seguinte, é o futuro mais próximo que consigo, sonolento, conceber, não posso negar que me assumo como um homem de esperança ... Serei?... Ou o que acontece é que, sendo contra o suicídio, o que quero é ver se , ampulheta em movimento, quando amanhecer, não estou mais velho, ganhei, por fim, direito a uma jornada diferente, embriagante, que me faça esquecer de tudo o que só me atormenta porque estou vivo - à espera que as horas passem.

Finalmente, sem saber como, tédio pariu crónica. O relógio pulou. Dá-me a sensação que, avariado, se espevitou na aproximação ao dia seguinte. Assalta-me o desejo de dormir, correr taipais a pensar nisto que escrevi, que não ganha pão, mas, afinal, ganha vida - e faz chegar o dia de amanhã, quem sabe se sem esta chuva que transborda lá fora, este desamor, esta estupidez que anda no ar e me amolece os gestos e a alma. Estou à espera que as horas passem. Afinal, talvez amanhã o sol se multiplique e nasça ao mesmo tempo para todos. Talvez amanhã me divirta a brincar com as crianças e, enfim, desperto, não queira que as horas passem."

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