quinta-feira, 26 de maio de 2016

Do lido, o sublinhado, em Altino do Tojal - Histórias de Macau

Não acredito que volte a Macau, mas sei que estou lá sempre, mesmo que não veja o planisfério onde, há anos, assinalo viagens. E assim mantenho, nas traseiras do meu luso olhar, ruas, varandas, rostos que não esqueço. "Vingo-me" no que leio, imaginando em português o que, por certo, o vai, na aparência, deixando de ser. E leio, da imprensa local, o que disse Camões e outros continuaram (continuam). E vou à lusa literatura, e vou aos jornais que, não em língua esfarrapada, me respondem ao essencial.

Hoje trouxe para a minha beira Altino do Tojal que conheci pessoalmente não sei bem quando (em Lisboa, no Jornal Novo?) e é dele o que aí fica, mais do que para ler, para viver.

in Histórias de Macau

"De mala na mão, diante da estação portuária - como meses atrás, à chegada, mas agora em afãs de partida -, alongo sobre Macau um último olhar, no caloraço húmido da tarde.

A cidade parece-me tão inabordável como no primeiro dia. A minha chave não lhe abriu a alma. Durante a minha permanência não tive artes de justificar sequer um abraço de despedida que me aqueça o coração friorento. Repassa-me o mesmo sórdido tédio, a mesma sonolenta fadiga moral.

Tal como à chegada, um cão fareja-me as calças - talvez seja o mesmo - e também desta vez o exame lhe desagrada, pois só falta que arreganhe os dentes, que rosnem. Não me impregnei devidamente do cheiro oriental; o meu cheiro ainda é o bárbaro cheiro europeu; continuo estrangeiro. Os olhos do cão repetem, inamistosos: "que vieste cá fazer?" E eu volto a considerar boa a pergunta. Que vim cá fazer? ... Que viemos nós, portugueses, cá fazer? ... Agora, para mim, é o regresso a casa; amanhã sê-lo-á para muitos mais; não tardará que o seja para todos. Lá que os outros regressem, entendo-o: eles têm raízes. Mas eu?... Pressa risível, a minha. Bem podia ficar a envelhecer aqui num canto, como um cacho esquecido em vinha vindimada. Para quê polar dum nada para outro nada? Que negócios me atraiem, que braços femininos e que saudações amigas me aguardam? Então porque regresso, à minha longínqua casa vazia? Atrás de mim espera o barco ... Em Hong-Kong o avião ... Pudesse antes embarcar numa máquina de velocidade inimaginável, que varasse silenciosamente a imensidão estrelada, a treva horrenda e fascinante, em ondas de eternidade, num desdobrar de galáxias, buscando respostas supremas, com o absurdo da vida a revelar-se limpidez... Isso já era qualquer coisa, tinha significado, alvoraçava a mente dum pobre bicho da Terra. Sobrevinha a loucura?... Ai de mim! Em verdade vos digo que não me sentiria mais só, lá no espaço infinito, do que neste mundo entre vós, os seres da minha espécie ...

Imóvel ao pé da mala, perante a indecifrável cidade, assim traduzo as palpitações do coração - desoladoramente vazio, tão gelado e escuro como a noite."

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