No próximo sábado, o grande auditório do Centro Cultural de Macau (CCM) acolhe a estreia da mais recente produção do grupo Dóci Papiaçám di Macau, “Unga Chá Di Sonho (Um Chá de Sonho)”, no âmbito do XXVII Festival de Artes de Macau, seguida da projecção de um vídeo assinado por Sérgio Perez. O PONTO FINAL acompanhou o elenco numa noite de ensaio, um colectivo onde todos se congregam em torno do teatro e na recusa de colar ao patuá uma sentença de extinção.
Sílvia Gonçalves
"Estremece o céu em trovões, a empurrar para dentro do teatro aqueles que se encaminham para a noite longa. Noites esticadas até à capitulação do corpo, levados pela voragem de uma semana que há-de culminar na ansiada estreia. Arnaldo Ritchie desafia a intempérie, sorve o cigarro sob os pingos de chuva que lhe escorrem pelo rosto. Afagado pelo fumo, dá conta da passagem demorada pelo Brasil, da vida como cantor de rock, que desembocou na criação recente de uma banda onde o tom melódico se sobrepõe à batida que rasga guitarras: “É um papel pequeno, o meu, nesta peça. Faço coro, somos um trio”, atira, como que a sugerir que a presença de fôlego, essa, está reservada aos actores, a quem cabe desfiar texto nessa língua crioula onde um português arcaico e doce é atravessado de sonoridades malaias, indianas, cingalesas ou cantonesas.
No bar atravessado de penumbra, actores, cantores e técnicos aviam o jantar em caixas de plástico. O tempo não sobra para quem se fez à chuva depois da jornada de trabalho, para entregar a noite a esse ofício oculto onde assumem personagens quase sempre arrancadas a ferros depois de horas infinitas sobre as tábuas. Sobrepõem-se as gargalhadas à chuva que investe sobre as vidraças. Comunicam em patuá e cantonense, numa mistura onde o que não se percebe, a intuição pressente: “Uma vez que se entra nesta família, nunca mais se sai”, diz Violeta do Rosário, que depois de se estrear em palco no ano passado, recolheu agora ao “backstage”, a uma multiplicidade de funções que ajuda ao funcionamento do todo.
“UI DI JANOTA!”
Todos acusam a chegada da protagonista, quando a menina loura de ascendência norte-americana atravessa o espaço. “Sou macaense, filha de pai português e mãe americana”, atira Cristiana Soares, embrulhada em timidez. Aos 24 anos carrega o peso de vestir a pele de Camila, a personagem central de uma narrativa pontuada por canções. Entre os que espalham ânimo pelos convivas sobressai José Carion, há dez anos no Dóci Papiaçám di Macau, que define a pertença ao grupo como “uma maneira de viver”: “Eu falava patuá em criança, mas não era um patuá como o de hoje, havia uma mistura com o cantonense”, diz José, sobre um dialecto que lhe corre no sangue.
“No caminho para casa, para a escola, passava pela casa do meu avô, Plácido Carion, e ele dizia: ‘Ui di janota!’, ‘hoje estás lindo!’, ou ‘Caça ah mui?’, ‘vais caçar gajas?’”, conta, com a gargalhada de quem desfia meandros adocicados da memória. O crioulo macaense não morreu, na família Carion: “Tenho uma tia que ainda fala patuá, Lígia Carion, tem uns 80 anos”.
“Topógrafo das obras públicas durante 20 anos”, até se atirar para o Canadá, José chegou ao grupo há dez anos. Diz-se cristão mas traz ao peito a figura em jade da deusa Kun Iam: “Para os chineses o jade é uma pedra protectora, ainda para mais uma deusa”. Mostra depois a pulseira que alguém lhe estendeu quando há dois anos a provação tentou tomar-lhe o corpo. José não aceitou que o cancro o afastasse do palco, cumpriu ensaios e noites de espectáculo antes de se entregar à cirurgia e tratamentos. Sacudida a doença, voltou ao grupo e a um trabalho de actor que passa quase sempre pelo improviso: “Eu não decoro o papel, eu preciso é de ensaios”.
Sobre a estreia deste sábado, José anseia pelo “pai san”, a sessão ritual que a antecede, e que congrega elenco e equipa técnica no exterior do CCM: “Fazemos uma oferenda aos deuses, ao meio-dia, lá fora, atrás do palco. Pomos um leitão, vinho chinês, maçãs e laranjas. E cada actor coloca três pauzinhos de incenso”. Fecha-se depois o rosto, para recordar a proibição de falar uma língua então rejeitada pelos macaenses: “No tempo do meu avô estávamos proibidos de falar cantonense. O meu avô tinha um chicote, e quando nos ouvia falar cantonense, dava com o chicote e dizia: ‘Torna papiá chinês?’, ‘outra vez a falar em chinês?’. Era para falarmos em português”.
“AQUI É MULHER, VÊM AQUI FAZER QUI CUZA?”
Homens e mulheres seguem em passo apressado pelo longo corredor que conduz aos camarins. Na sala a elas reservada, Violeta dá indicações para que escolham um cacifo. Despem-se os corpos de acessórios, hoje ainda não é tempo de caracterização ou figurinos. Zanga-se Rita Cabral, quando dois actores ousam avançar sobre o espaço: “Aqui é mulher, vêm aqui fazer qui cuza?”, pergunta a actriz, num português contagiado de patuá, que resulta na retirada apressada dos incautos.
Numa das laterais do palco, espreitam os rostos em silêncio pelas aberturas do pano negro. A aguardar a chamada ao palco, Alfredo Ritchie leva já 15 anos de produções do Dóci: “Desde que me reformei do hospital. Mas acompanho o grupo desde o início. Nesta peça, faço de eu próprio. Sou um médico avarento”, conta. E estende-se na revelação: “A minha paciente, a Camila, vou pô-la a sonhar com um chá bolorento que um bisavô me ofereceu”.
Se Alfredo está entre os antigos do elenco, Mariana Pereira estreia-se nesta produção, mas não no palco: “Fiz ballet durante 14 anos. Teatro é a primeira vez. Aqui, sou uma apaixonada não correspondida. Não foi voluntário, convidaram-me e eu entrei. Tenho um grande interesse pelo patuá, e esta é a única maneira que tenho de aprender a língua”, conta a arqueóloga, de 29 anos, que entende assim, o trabalho desenvolvido pelo Dóci Papiaçam desde 1993, em nome de uma língua que a custo contorna a extinção: “Não é tanto que as pessoas falem, mas que saibam que a língua existe. Para a identidade macaense é fundamental. Sinto que estou a aprender. O mais difícil é a entoação, onde páras, onde se abrem as vogais. Porque infelizmente já não se ouve”.
Não se ouve, mas subsiste, ainda, no âmago de uma comunidade que teima na sua sobrevivência: “Usa-se entre os macaenses de forma residual, para se afirmar que se é macaense. Como uma forma de dizer: ‘Nós somos diferentes, nós estamos aqui e isto é uma conversa entre nós’. E isto partilha-se através do teatro. É uma tentativa de abertura às outras comunidades, através de algo que é fortemente da comunidade, que é a língua”, diz Mariana.
LÍNGU DI GENTE ANTIGO DI MACAU
É Miguel de Senna Fernandes, fundador do Dóci Papiaçám di Macau, autor e encenador de todas as produções do grupo, quem agora caminha de forma incessante no topo da plateia: “Atenção, pessoal, todos os que vão precisar de microfone já o têm? Vamos testar a voz sem música, o Mike precisa de conhecer o volume da vossa voz”, indica. Desce depois ao bar, para morder o jantar que há-de aguentar o corpo noite dentro.
“Nós começamos por pura brincadeira. Eu sempre admirava o humor em geral, o humor em palco, a sitcom, fui sempre ávido leitor, consumidor, desse tipo de comédia, muito influenciado pela comédia americana. Adorava o humor do Adé dos Santos Ferreira, que era o fazedor de récitas. Naquela altura era ele que preparava as peças todas”, recorda Senna Fernandes, para quem o contacto com o patuá começou antes da leitura do autor macaense. “Eu era miúdo, ouvia a minha avó Maria Luísa. Ela falava, entre ela e as suas amigas, durante as festas macaenses, os chás gordos. Juntavam-se naquele cantinho e riam-se, riam desbragadamente”.
Miguel desperta para um crioulo que o leva a interrogar: “Eu perguntava ao meu pai: ‘Nunca tinha ouvido a avó falar assim, ela falava numa língua estranha. Aquilo não era português, não era espanhol”. E respondeu-lhe o pai, Henrique Senna Fernandes: “‘É língua de gente antiga, é patuá’. Eu tinha uns sete anos, fiquei admirado com aquilo”. Seguiu-se a inquirição à avô, que entendeu não desvendar o mistério. “Perguntei à minha avó o que ela estava a dizer, tentei reproduzir a frase que ela tinha dito, que despoletou a grande gargalhada. A minha avó mudou de cara, e disse em português: ‘O menino tem é que aprender a falar bem português’. Era a mentalidade, naquela altura. Falar patuá era falar mal português”.
O advogado e encenador haveria de aprofundar o conhecimento do patuá pelos livros de José dos Santos Ferreira, que o pai trazia: “Depois ele morre em 1993, nessa altura ele estava a planear uma nova récita, havia já ensaios. O grupo que ficou destes ensaios resolve continuar”. Abre-se a passagem, ainda em 1993, à criação do Dóci Papiaçám di Macau, com Miguel entre os fundadores, empurrado para a escrita e encenação logo na primeira peça.
Com “Unga Chá Di Sonho (Um Chá de Sonho)”, Senna Fernandes soma à escrita para teatro a composição musical. A peça que se estreia este sábado, não sendo um musical, inclui seis canções, quatro delas escritas e musicadas pelo encenador: “Fiz uma adaptação de uma música tradicional macaense, que é a ‘Bastiana’. Temas meus são quatro, porque há uma canção que é chinesa. Eu sempre quis meter música, mas nunca soube como”.
E que história conta o autor em “Um Chá de Sonho”? “A ideia é um sonho que a nossa heroína, Camila, vai fazer, uma viagem. Ela adormece por efeito de um chá”. Uma viagem a uma Macau desaparecida, que responde ao desejo de uma jornalista que não quer repetir os lugares turísticos que os roteiros lhe impingem, conta.
“Ela acorda num sonho, ela fala patuá. Neste sonho ela começa a experimentar muitas coisas, encontra pessoas, situações, encontra nostalgia. É nostalgia, no fundo, o que ela quer”. E que Macau repousa no sonho de Miguel? “Paz, muito mais calmo do que isto, não tem nada a ver com isto. Nada de opulências. Macau nunca foi um sítio de opulências e novos-riquismos. Não é saudosismo que anima esta peça, é a mensagem que está por detrás disto: ainda existe uma Macau que está sempre esquecida, que está na cabeça das pessoas”.
O encenador regressa depois ao auditório, onde observa o modo como a luz incide sobre o palco e aponta as marcações dos actores. Fora de cena, Mané Crestejo aguarda o momento de entrar. Coube-lhe em sorte a personagem Rodrigo Álvares, par romântico de Camila. Macaense com passagem prolongada por Lisboa, descreve a chegada ao grupo, há dois anos, como a possibilidade de “participar em momentos históricos”, que significam “divulgar e motivar o interesse pelo patuá”. E o contacto com a língua estende-se para lá da dimensão do espectáculo: “Entre nós temos a tendência para falar em patuá, mesmo fora dos ensaios. Temos sempre quem nos corrija, e aprendemos”.
“ELE ÀS VEZES É ‘BAFO COMPRIDO’, FALA MUITO”
A plateia é agora percorrida por figuras de um outro tempo, que cantam pregões antigos em cantonense: o amolador de facas, o vendedor de azeitona, o engraxador, o jornaleiro. De fundo, ouve-se a “Bastiana”, a que Miguel Senna Fernandes emprestou um toque de Bolero. Sónia Palmer, fundadora do grupo, observa ao centro da plateia. “Falo o patuá por ouvir a minha mãe. Ela tem 100 anos e ainda se lembra da língua”. E conta, sobre o princípio de tudo: “Primeiro foi um grupo de carolas que gostava de teatro. Pensámos nas peças do Adé, quisemos reavivar aquilo. Mas fomos evoluindo, e já não fazemos o que o Adé fazia. Criamos um estilo próprio. Sem o Miguel não teríamos mais peças de teatro. É o grande dinamizador disto tudo. Ele às vezes é ‘bafo comprido’, fala muito”, graceja Sónia.
Ao final da noite, Miguel junta no palco o elenco. Distribui indicações por actores e técnicos, neste que foi o primeiro ensaio no Centro Cultural de Macau, depois de meses no ginásio da Escola Portuguesa. Agora que sentiram o pulso à sala grande, hão-de voltar até que o teatro se encha de gente e o pano suba. Até o silêncio dar lugar ao humor e ao sarcasmo com que o Dóci, como eles dizem, se apresenta perante quem os segue desde sempre."
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quinta-feira, 5 de maio de 2016
MACAU - A nostalgia de uma Macau desaparecida, pela voz crioula dos Dóci Papiaçam
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