quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sintra - "Louvar Amar" ( II )

Vergílio Ferreira (com a devida vénia):

(...) "Porque a vida do ermo, solitária e apartada, é vida angelical, mas a vida da cidade é ruído do infernal". Não será possível sabê-lo no fresco repouso da sua sombra? Porque é no silêncio repousado que a meditação tem melhor voz de se ouvir. Mas o inferno insiste em voltar sob a forma do trânsito e do ruído. E com eles a poluição dos ares deste verdadeiro locus amoenus de que variamente nos fala a literatura medieval latina. Até quando a vilegiatura de Sintra se manteve na suspensão de tudo quanto a perturbava, mesmo da mundialização imposta das praias. Porque a praia é uma invenção dos começos do século passado. A imagem dessa vilegiatura era a de um senhor composto num vestuário de rigor como o era o das suas damas. Porque a frescura dos bosques era bastante para a canícula não ter razão e a reserva do corpo se cumprir. Mas a praia desautorizou essa compustura e severidade. E Sintra, renovada no paganismo, é hoje um compromisso entre as ninfas discretas da solidão desses bosques e as nereidas da nudez solar.


Nâo é possível pedir-se a prevalência de uma sobre as outras. Mas de pedir ou desejar que a cidade a não invada com o desembaraço expeditivo de quando expulsa dela o paraíso para o inferno entrar. Que esse inferno passe de largo com a perda de esperança, para que ela e o mais aqui continuem. Porque, como numa mesquita ou em certas salas reservadas, há que deixar à porta o que de impureza arrastamos com os pés. Ou como num atelier, como Picasso dizia, é necessário deixar à entrada tudo o que seja perturbação para a arte se cumprir.


Pagã ou cristã ou mesmo moura, Sintra tem o sagrado do outro lado da vida imediata e utilitária. A convulsão apazigua-se, o ruído afoga-se no silêncio da floresta, o tempo abranda-se numa lentidão genesíaca. Um banco e uma sombra tranquiliza-nos do nosso excesso e é possível então ouvir em nós a voz de outras vozes ensurdecerem. Amar o seu silêncio, a frescura inicial da alma, a História e monumentos feitos elementos da Natureza. Amar a legenda sempre recente, a memória breve, a iniciação à alegria que não cansa.


Louvar Sintra. Amar Sintra."









Fontanelas, 18 de Junho de 1994

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