Padre António Vieira - do Sermão de Santo António aos peixes
"(...) Os homens, com suas más e preversas cobiças, vem a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados do mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer.
Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes, e eu que prego aos peixes, para que vejais quam feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não; não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os tapuías se comem uns aos outros; muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos.
Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas? Vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer.
Morreu algum deles: vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico que o curou e ajudou a morrer; come-o o sangrador, que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade para mortalha o lançol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que cantando o levam a enterrar; enfim, ainda ao pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra."
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