sábado, 2 de outubro de 2010

"Gente dos arredores..."

"Deixa-me folheá-lo devagar. Demorar-me em cada página até a recordação abrir toda" *

in ENTRE VISTAS NOS ARREDORES DAS MONTANHAS AZUIS, de M.A.

"...Se é verdade que razões de ordem económica, nunca, ou quase nunca, fazem dos portugueses homens ou mulheres dos grandes centros urbanos, também não é menos certo que é o subúrbio que, em regra, mais aconchega, mais aproxima as pessoas, mais combate o isolamento de que tanto se fala. Sidney não é pousada para português.

Marrickville, por exemplo, sim. Tem salsichas gordas à venda, não tem, cheia de triques, uma Sidney Opera House; bebe cerveja barata e sem controlo, não tem o "desafio" de um Aquário a 1 800$00 por visitante.

 Marrickville está longe de ser uma cidade como Sidney. Marrickville é um aglomerado de aldeias, com o inconveniente, quando muito, de ser vivida por gente que se veste como os fantasmas ou tem os olhos em forma de amêndoa e/ou fala língua de trapos... Mas sempre é, no seu conjunto, mais acolhedora do que a grande metrópole que lhe fica perto e que só tem baías, barcos de recreio, combóios estranhos que deslizam no ar sobre um único carril, torres que, de olhá-las nos píncaros, se fica com dor no pescoço. Ainda se estivesse completamente isenta de moscas que ameaçam os seus arrabaldes... Mas não...

 Bem vistas as coisas, pagar uma fortuna (admitindo que isso seria coisa para emigrante) para viver no meio de tanto cimento, só para ter menos moscas e a possibilidade de comprar mais facilmente o chapéu das rolhas que, em movimento, as afastam, não compensa.

Às malvas o Sidney Town Hall, do órgão dos 9000 tubos! Ainda se lá tocassem o bailinho da Madeira ou um corridinho do Algarve... Não, não!... Sidney, não.

Emigrante comum é gente de arredores. Gente de roupa no estendal. Gente do quintalinho que dá couves com sementes vindas directamente de Alcantarilha, ou vinho como o "de lá". Gente da praia sem ferries e sem nudismo. Gente da missa em igrejas pequenas. Gente com moradia baptizada e azulejo a Nossa Senhora de Fátima na fachada. Gente da ida à esquina do mais em conta. Gente do pé-de-meia, que gosta pouco dos anúncios luminosos de Sidney. Gente mais do mercado abastecedor do que da loja sem preço à vista, que, além do resto, obriga a falar inglês."
 *Vergílio Ferreira in "Na tua face"

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