Dar voz a quem nos proporcionou, anos a fio, bem-estar, encanto, sorrisos, emoções - Cultura. Prazer.
Recordar. Em seis conversas breves, décadas de Arte. Lá, na Casa do Artista, em Lisboa, onde, no ar, andam palavras, muitas palavras, gestos, simples gestos - à mistura com lágrimas ou gargalhadas, mas sempre simpatia. E Amor pelo que se fez e pelo público com que se esteve (e está) em comunhão.
Saudade? Talvez. Aqui, entretanto, nesta ruadojardim, respeito pela memória alheia. Recordação. Reaproximação. Relembrar sorrisos e/ou gotas de orvalho. Na Casa onde isso é quotidiano e a Beleza de um passado-presente enche paredes e povoa espaços. Em tempo de Intervalo.
Ouvir!
Ouvir:
Deolinda Rodrigues - fadista
- Boa tarde! É um prazer! Vamos falar de Bilhete de Identidade?...
- Não tenho!...
- Ah, isso é uma coisa formidável!
- O meu Bilhete de Identidade é perpétuo.
- Pronto, ficamos com essa ideia do perpétuo ... Influências profissionais, prémios, diga ...
- Custa-me muito estar a falar dessas coisas ...
- Uma pincelada rápida ...
- Realmente, lembraram-se e lembram-se ... Ainda há dias me telefonaram do Museu do Fado. Fiquei com muita pena porque ía lá o Presidente da República, mas já não me sinto com capacidade para estar assim muito tempo junto de muita gente ... E ter que cumprimentar este e aquele ... Isso p´ra mim já é muita coisa e então não fui. Mas tenho tido sorte, porque até tenho prémios a que não assisti porque não pude ou porque não me deu vontade ... Ou ...
- Pachorra ...
- A palavra é essa. Tenho assim umas coisas engraçadinhas de que gosto muito e que ficarão para a minha filha. Ela gosta mais do que eu ...
- Tem, "pelo menos", uma boa espectadora, que é a filha ...
- Lá isso é. E crítica.
- Honestamente crítica.
- Porque há alguns críticos que ... enfim ...
- Não, a minha filha repara na roupa, na maneira de estar, "não gostei que fizesses isto e aquilo..." É claro que eu viro-lhe as costas ... Mas, no fundo, fico contente.
- Influências profissionais?... Há alguém que a tenha influenciado para ser o que foi - e o que é?...
- Eu fui sempre empurrada ... Nunca soube o que ía fazer... Na verdade eu nunca soube ...
- Então quando dizem que é a sua vez ...
- Eu ía ... Um bocadinho desnorteada. Fui sempre empurrada: "tens que fazer isto!" E eu: "está bem!..." Não era desinteressada, nem era convencida, porque nunca fui ... A gente o que tem é sempre receio ... Um Alberto Ribeiro, por exemplo, não era uma pessoa qualquer... E quando ele me deu um abraço?!... "Dá cá um abraço!..."
Outro momento inesquecível que tive foi com a Amália, quando ela estava muito mal de saúde. Pois foi à casa onde eu estava a trabalhar (O Painel), escancarou as portas de um bar, abriu os braços e disse à frente de toda a gente: "estes braços são para si!..." Foi a coisa mais bonita que tive na minha vida. Ia agradecer-me, ia ver-me porque eu sempre tinha querido saber da sua saúde. Eramos amigas, graças a Deus.
- Fale-me de António Silva - a pessoa e o artista...
- António Silva, o Mestre António Silva ...
- O Mestre ...
- O Mestre António Silva ensaiava de uma maneira muito engraçada: não ensaiava. Chamava as pessoas e explicava que ía dizer isto assim-assim consigo.
- Era o que ele fazia ...
- Era o que me fazia a mim. "Deolinda, eu vou fazer isto e isto contigo. E vou também ter esta atitude: ou dançar, ou levantar uma perna, um gesto, vou fazer este gesto contigo (e exemplificava).
- E eu o que é que faço? - perguntava-lhe.
- Fazes assim e assim ... E "ensaiava" comigo. Era assim: não tinha ninguém a ensaiar. Era um grande homem. Era uma honra muito grande trabalhar com ele.
- Imagino ...
- Trabalhei com ele várias vezes, mas o maior trabalho que tive ao lado de António Silva foi o filme "O Passarinho da Ribeira" ... E fiz também "O Noivo das Caldas", onde entrei com ele. Tivemos duas intervenções de entrar e sair.
- O homem era igual ao artista?
- O homem era igual ao artista.
- Era um bom homem?
- Era um bom homem. Tudo o que ele dizia estava na sua cabeça ... Não quer dizer que fosse sempre artista. Há alturas na vida em que a gente ... Mas há outras em que temos que ser artistas ...
- Diga-me um nome da nova vaga ...
- Não sei o que é ...
- Não sabe?...
- Não sei o que é ...
- Não sabe?...
- Só sei que há artistas que gosto de ouvir. Não me quero esquecer das outras, mas gosto de ouvir a Carminho, filha da Teresa Sequeira. Ela canta muito bem o fado, é bonita, tem tudo para ser uma grande artista. E a Marisa, na sua maneira de cantar, de se apresentar. É assim que ela gosta e eu acho bem. A gente tem que se apresentar como gosta. Que eu não acho assim muito bonito, na verdade, não acho. Mas eu como sou muito antiga ... E agora é tudo moderno. Posso ser eu a errada.
- Escolha, na sala, o local onde a posso fotografar ...
Bem-haja, Deolinda Rodrigues!
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