de um e-mail recebido
José Manuel Fernandes
Colunista
Nasci a 7 de Abril de 1957 e sou jornalista desde 1976, passei por
vários jornais (Voz do Povo, Expresso) e fui fundador e, mais tarde,
director do Público (de 1998 a 2009). Escrevi vários livros,
nomeadamente O Homem e o Mar, o Litoral Português (Círculo de
Leitores/Gradiva), Diálogo em Tempo de Escombros (com D. Manuel
Clemente, Pedra da Lua), Liberdade e Informação (Fundação Francisco
Manuel dos Santos) e Era Uma Vez a Revolução (Aletheia) e colaboro,
como professor convidado, com o Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa.
"José Sócrates foi a pior coisa que aconteceu na democracia portuguesa
nos últimos 40 anos
É talvez altura de nos curarmos de vez do socratismo
José Manuel Fernandes 25/11/2014, 14:27
Durante muitos anos muita gente não quis ver, não quis ouvir, não quis
ler, recusou tomar conhecimento. Sócrates estava acima disso. Sócrates
não tolerava dúvidas. Mas é altura de aceitar a realidade.
Uma parte do país – e um contingente notável de comentadores – parecem
continuar em estado de negação. Durante anos não quiseram ver, não
quiseram ouvir, não quiseram admitir que havia no comportamento de
José Sócrates ministro e de José Sócrates primeiro-ministro demasiados
“casos”. Em vez disso só viram cabalas, só falaram em perseguições, só
trataram eles mesmo de ostracizar ou mesmo perseguir os que se
obstinavam em querer respostas, os que insistiam em não ignorar o
óbvio, isto é, que Sócrates não tinha forma de justificar os gastos
associados ao seu estilo de vida.
Agora, que finalmente a Justiça se moveu, eles continuam firmes na sua
devoção – e nas suas cadeiras nos estúdios de televisão. Não lhes
interessa conhecer o que se vai sabendo sobre os esquemas que Sócrates
utilizaria para fazer circular o dinheiro, apenas lhes interessa que
parte do que foi divulgado pelos jornais devia estar em segredo de
Justiça. Antes, anos a fio, quando não havia segredo de justiça para
invocar, desvalorizaram sempre todas as investigações jornalísticas
que tinham por centro José Sócrates.
Isto é doentio e revela até que ponto o país ainda não se libertou da
carapaça que caiu sobre ele nos anos em que o ex-primeiro-ministro
punha e dispunha. Nessa altura também muitos, quase todos, se
recusavam a ver, ouvir ou ler, até a tomar conhecimento. Não me
esqueço, não me posso esquecer que quando o Público, de que eu era
director, revelou pela primeira vez a história da licenciatura,
seguiu-se uma semana de pesado silêncio que só foi quebrada quando o
Expresso, então dirigido por Henrique Monteiro, resistiu às pressões
do próprio Sócrates e repegou na história e denunciou as pressões. Não
me esqueço que tivemos uma Entidade Reguladora da Comunicação Social
que fez um inquérito e concluiu que o silêncio de toda a comunicação
num caso de evidente interesse público não resultara de qualquer
pressão – a mesma ERC que depois condenaria a TVI por estar a
investigar o caso Freeport. Como não me esqueço de como uma comissão
parlamentar chegou mais tarde à mesma conclusão, tal como não me
esqueço de como vi gestores de grandes empresas deporem com medo do
que diziam.
Muitos dos que agora rasgam as vestes porque o antigo
primeiro-ministro foi detido no aeroporto foram os mesmos que nunca
quiseram admitir que havia um problema com Sócrates, com os seus
casos, com o seu comportamento, com o seu autoritarismo. E também com
o seu estilo de vida.
Há momentos que chegam a ser patéticos. Como é possível, por exemplo,
que um homem supostamente inteligente, como Pinto Monteiro, queira que
nós acreditemos que foi convidado por José Sócrates para um almoço, de
um dia para o outro, numa altura em que o cerco se apertava, e que,
naquele que terá sido o seu primeiro almoço a sós, só falaram de
livros e viagens, como se fossem dois velhos amigos? Como é possível
que continue a defender a decisão absurda sobre a destruição das
escutas? Ou a achar que nada mais podia ter sido feito na investigação
do caso Freeport?
Mas há também um lado doentio e provinciano na forma como se tem
comentado este caso. Uma das raras pessoas que detectou essa
anormalidade foi Nuno Garoupa, professor catedrático de Direito nos
Estados Unidos e que, por ter respirado ares mais arejados, não teve
dúvidas, notando que “nós é que vivemos num mundo mediático”, não é a
Justiça que cria o circo, como se repetiuad nauseam nas televisões.
Mais: “A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político,
independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a
justiça não são a mesma coisa.” Ou seja, deixem-se da hipocrisia do
“inocente até prova em contrário”, pois isso é verdade nos tribunais
mas não é verdade quando temos de julgar politicamente alguém como
José Sócrates. O julgamento político, como ele sublinha, não está
sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal.
A clareza do debate político exige pois que saibamos fazer distinções.
A distinção que António Costa fez logo na madrugada de sábado, quando
disse que “os sentimentos de solidariedade e amizade pessoais não
devem confundir a acção política do PS”, é justa e mantém toda a sua
pertinência. Se o PS tem conseguido manter a frieza – quase todo o PS,
pois são raras e muito pontuais as excepções –, é importante para esse
mesmo PS ir mais longe. E tocar um ponto nevrálgico: aquilo que nós,
cá fora, sabíamos sobre as excentricidades e as práticas de José
Sócrates dão-nos apenas uma pequena amostra do que se sabia em muitos
círculos do PS. Sabia, mas não se comentava, mal se sussurrava.
Vou mais longe: nos partidos estas coisas são conhecidas. Pelo menos
no PSD e no CDS, para além do PS. Ninguém ficou surpreendido quando a
Justiça caiu sobre Duarte Lima – todos os seus companheiros de bancada
conheciam as suas excentricidades. Pior: muitos ainda hoje comentam
como a Justiça ainda não apanhou alguns antigos secretários-gerais,
aqueles que tratavam das contas e apareceram ricos de um dia para o
outro. Pior ainda: nos bastidores dos partidos as histórias de
autarcas, em particular de alguns dinossauros, são infindáveis. E há
longínquas férias na neve de dirigentes partidários que incomodam os
seus correligionários sem que nada aconteça para além de um comentário
fugaz.
Vamos ser claros, deixando a hipocrisia do respeitinho de lado. A
dúvida que havia sobre José Sócrates era sobre se seria algum dia
apanhado. A percepção que corroía a confiança nas instituições não era
sobre se os seus direitos humanos poderiam vir a ser negados (a
sugestiva preocupação de Alberto João Jardim), mas sim sobre se algum
dia um aparelho judicial que, anos a fio, pareceu amestrado seria
capaz de apanhar alguns dos fios das muitas meadas tecidas pelo antigo
primeiro-ministro.
Escrevi-o muitas vezes e vou repeti-lo: José Sócrates foi a pior coisa
que aconteceu na democracia portuguesa nos últimos 40 anos, e não o
digo por causa da bancarrota. Digo-o por causa da forma como exerceu o
poder, esperando fazê-lo de forma absoluta, sem contestação, sem
obstáculos, sem críticos. Não os tolerava no PS, no Governo, nos
jornais, nos bancos, nas grandes empresas do regime.
Não sou a primeira pessoa a descrever assim José Sócrates. Nem essa
descrição é recente. Recordo apenas um texto de António Barreto, de
Janeiro de 2008 (há quase sete anos, bem antes da bancarrota), onde se
escrevia que “o primeiro-ministro José Sócrates é a mais séria ameaça
contra a liberdade, contra a autonomia das iniciativas privadas e
contra a independência pessoal que Portugal conheceu nas últimas três
décadas”. Lembram-se? Eu não o esqueci.
O que distingue o socratismo não é uma visão da forma de ser
socialista, é uma visão schmittiana de exercício do poder. Compreendo
que o seu estilo de líder forte possa ter fascinado quem cavalgou a
onda, mas é bom que hoje olhem para o elixir que provaram e que os
inebriou, e percebam que era um veneno. Ou seja: acordem para a
realidade. Depois do que se passou nos últimos dias, do que já sabemos
sobre os contornos do processo e das acusações, do que imaginamos mas
ainda não sabemos, a pergunta que muitos têm de intimamente fazer é
“como foi possível?”, “como é que acreditei?”. Porque se não forem por
esse caminho o seu único refúgio acabará por ser uma qualquer teoria
da conspiração como a imaginada pelo insubstituível MRPP.
Ao contrário do que se repetiu à exaustão, o carácter não é um detalhe
em política. E se ninguém deve apagar rostos em fotografias, à la
Stalin, também é preciso de olhar de frente para o que, no passado,
recomenda que se exorcizem fantasmas, demónios, maus hábitos e
práticas não recomendáveis".
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