quinta-feira, 14 de maio de 2015

"A ideia de que o povo é quem mais ordena não vingou em Macau"





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 Ponto Final
Em 1990 Jorge Morbey publicou “Macau 1999, O Desafio da Transição”, no qual avançava com ideias para o regime político de Macau no pós-transição. O investigador e professor convidado na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau caracteriza de “cosméticas” as diferenças entre o regime da administração colonial portuguesa e o sistema político actual. O académico considera que existe “unanimidade” entre as elites políticas locais, que os interesses económicos predominam e que a “xenofobia” impera quando o que está em causa são os conflitos entre os residentes e os não-residentes.
Isadora Ataíde
PONTO FINAL - Este ano completam-se 25 anos da publicação do seu livro, “Macau 1999, O Desafio da Transição”. Qual era, então, o objectivo da obra?
Jorge Morbey – Na altura não tínhamos um censo credível, não se sabia quantos éramos, trabalhava-se com números estimados da população. Um dos objectivos era fazer uma análise da população em termos qualitativos e quantitativos, perceber quais eram as expectativas locais acerca do futuro e da transição política. Ainda não havia a Lei Básica, mas já se tinha a declaração conjunta. Entre a população chinesa, os escalões mais jovens consideravam que a única saída era a imigração. Entre os macaenses havia um sentimento semelhante, mas também nutriam a expectativa de ingressarem na função pública em Portugal. Os portugueses, na sua maioria, tinham o futuro assegurado na função pública. Mas o estudo também pretendia apresentar os desafios políticos da transição. No livro ensaiava ideias para um regime político em Macau pós-transição. Eu tinha a ideia de que Macau se desatrelaria de Portugal e se atrelaria à locomotiva China, mas com um sistema que funcionasse bem, com um modelo democrático, mas isso não se concretizou.
- O regime político do pós-transição assemelha-se ao sistema do período colonial?
J.M. - Em perspectiva histórica, foi apenas em 1844 que Macau foi integrado no sistema político colonial português, o que se deveu sobretudo à ameaça da ocupação inglesa. Nesta altura, a situação económica de Macau bateu no fundo e foi então que se entrou no ciclo económico do jogo, o que permitiu que a economia florescesse. Com o 25 de Abril, foi instaurada a democracia em Portugal, mas os princípio democráticos acabaram por não ser transpostos para Macau. Penso que o Governador Garcia Leandro tinha esta intenção, mas ela não se materializou. O Estatuto Orgânico de Macau, de 1976, estabeleceu a Assembleia Legislativa, com um regime de sufrágio directo e indirecto e as escolhas do Governador. Em suma, com a criação da RAEM, deu-se um tratamento cosmético ao regime anterior. Este modelo agradou aos representantes informais da República Popular da China, porque estes consideravam que a participação popular, o sufrágio universal, não era possível, com o argumento de que a população era ignorante. De facto não houve uma evolução democrática depois do 25 de Abril, porque os interesses das elites sobrepuseram-se: os interesses dos poderes económicos não iam ao encontro de um tal projecto e a ideia de que o povo é quem mais ordena não vingou em Macau.
- No seu entender, como se caracteriza o regime político de Macau na actualidade?
J.M. – As características são bastante semelhantes ao período anterior. Houve alguma cosmética que serviu às mil maravilhas o pressuposto da integração com a China. Eu penso que a Lei Básica, contrariamente ao que pensam os dirigentes chineses, acaba por se aproveitar do Estatuto Orgânico de Macau. Só alguma cosmética a diferencia do sistema colonial. Os portugueses foram responsáveis por prolongar um sistema autoritário em que o Governador era quem mandava. Agora, é o Chefe do Executivo quem manda.
- Podemos considerar o regime político de Macau um regime liberal?
J.M. – Não, não é um regime liberal. Até um certo ponto é positivo que não tenha as características neoliberais, nesta altura em que vemos os desmandos das políticas neoliberais, nefastas e contrárias ao Estado social. Mas o sistema político não deixa de ser manobrado pelos agentes do sistema capitalista em Macau. O antigo líder da comunidade chinesa em Macau, Ho Yin, era banqueiro e representante do povo chinês. E actualmente continua a ser evidente a vitalidade e os proventos de meia dúzia de famílias de Macau, que já tinham o controlo antes da reunificação e continuam a florescer e nada lhes acontece.
- Existe oposição política em Macau?
J.M. – Eu julgo que não. Não se pode chamar oposição, porque no sistema político actual de Macau, assim como no tempo da administração portuguesa, não há espaço para uma oposição e nem sequer se prevê que essa oposição exista. A essência da ideia de oposição implica que quando a maioria é contra o governo, a oposição está em condições para formar um novo governo. Podem existir opiniões, grupos que pugnam por um modo diferente de se fazer política, mas eles não podem ser chamados de oposição, porque não estamos num sistema democrático.
- No entanto, há grupos que criticam as políticas do Governo, embora não tenham um projecto político diferenciado...
J.M. - Eu acho que não há oposição e também não há um projecto de quem não é oposição. As Linhas de Acção Governativa são um mero ritual, uma mera aparência de liberdade e democracia. Os grupos também não têm propostas alternativas porque sabem que estas são inviáveis, porque eles nunca vão atingir o poder. Em Macau funcionaram outrora instituições com alguma tradição democrática, como o Senado, embora a representação fosse basicamente de portugueses. Depois do 25 de Abril podíamos ter retomado a tradição democrática em Macau, independentemente de se equacionar ou não a integração com a China. E tivemos tempo para instaurar um sistema democrático em Macau que funcionasse. As autoridades portuguesas eram muito democráticas em Portugal, mas não quiseram nada com o mesmo modelo em Macau.
- Em Hong Kong vê-se conflito e disputa entre as elites sobre o futuro político da Região. Em Macau há divergências sobre a situação política do território?
J.M. – Não, em Macau há unanimidade entre as elites. Há uma certa conformação e sensação de inevitabilidade entre a população. Penso que entre os mais jovens há uma certa inquietação, mas esta é rapidamente desmobilizada, porque a ideia que impera é que tudo o que se faça para democratizar as instituições políticas é tempo perdido e ninguém beneficia com isso. E como em Macau o valor do dinheiro é mais importante do que tudo, os líderes com novas ideias não têm o suficiente entusiasmo para superar as barreiras.
- Como se explicam os conflitos entre os residentes e os não-residentes?
J.M. – Isso é xenofobia. É uma xenofobia um bocado estranha porque é dos chineses com residência contra os chineses do Continente, e não se restringe aos não-residentes virem para cá trabalhar, mas espelha-se também na relação com os turistas da China Continental. Esta ideia xenófoba de que todos os que não são residentes permanentes não têm direito a vida em Macau é extremamente perigosa para o futuro. Essa ideia xenófoba não tem em consideração que Macau não tem quadros preparados em número suficiente para fazer frente aos desafios que se colocam a nível profissional.
- Há diálogo entre os diferentes grupos sociais de Macau? Entre as comunidades chinesa e portuguesa, por exemplo?
J.M. – Não, eu penso que a maioria dos chineses de Macau estão-se nas tintas para a comunidade de língua portuguesa. Isso não quer dizer que hão haja indivíduos etnicamente chineses que não estejam próximos da comunidade, mas é uma minoria. Os líderes políticos mais salientes do Governo de Macau também não são indiferentes, mas isto acontece porque a China quer fazer de Macau uma plataforma para as relações com os países de língua portuguesa, embora Brasil e Angola não precisem de Macau e São Tomé e Príncipe não tenha relações com a China devido aos seus laços com Taiwan. Talvez Cabo Verde e Moçambique beneficiem. Estas instituições que articulam os países de língua portuguesa são uma espécie de expiação para explorados e exploradores, colonizadores e colonizados.
- A imprensa em Macau desempenha um papel de vigilância em relação ao poder político?
J.M. – A imprensa chinesa eu não leio, mas sei o lugar que os jornais chineses ocupam, e sabemos a orientação do maior jornal de Macau, daí que não se esperam grandes divergências em relação às políticas. Em relação a comunicação social de língua portuguesa, eu não creio que alguém dê atenção ao que se diz. Vê-se mais irritação nalguns jornais do que noutros, mas tudo isso somado é igual a zero. Ninguém liga ao que se diz.
- A maioria da comunidade de língua portuguesa não fala o mandarim ou o cantonense. Este aspecto não afecta o diálogo e a proximidade entre as comunidades?
J.M. – Eu julgo que sim. Quando eu estive no Instituto Cultural criei um centro de línguas, promovemos cursos de língua portuguesa, de cantonês e de mandarim. Pensava eu que era uma forma de nos aproximarmos, portugueses e chineses. Quando eu saí do IC o centro foi imediatamente encerrado. Nós, no período da administração portuguesa, nunca levamos a sério a importância de se trabalhar com as diversas culturas presentes em Macau. Cada um vive para o seu lado e para o seu lado se governa.

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