terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A história da nacional gatunagem

"Confesso-me indocumentado, do ponto de vista histórico, relativamente ao tema gatunagem. Já não tenho avós a quem perguntar como foi, por exemplo, na democracia anterior e, para falar verdade, não me está nada a apetecer passar uns dias no aconchego das bibliotecas a consultar sobre o tema amarelecidos jornais de épocas recuadas onde o assunto esteja noticiado. Se o homem sempre foi o mesmo - embora umas vezes com mais verniz, outra com menos - resta-me abordar a minha geração para apontar esta ou aquela pista. Em maré de subsídios por tudo e por nada, este curtíssimo trabalho é, quando muito, o prólogo de um subsídio (sem cifrão), faltando-lhe, apesar de tudo, a distanciação no tempo que torna as situações mais claras e objectivas.

Talvez importe, contudo, deixar aqui expressa a sugestão aos sociólogos para que tratem aprofundamente o título "A gatunagem portuguesa nos últimos cem anos".

Não a crónica dos bons ou maus malandros, mas a versão documentada do que têm sido gerações de ladrões, enquadrada do ponto de vista histórico, como penso que mandam as regras.

O que pessoalmente posso dizer é muito pouco, mas é da melhor vontade: vítima, como os demais portugueses, de sucessivas novas ordens económicas, ou dos seus, mais ou menos, bem intencionados esboços, não me é difícil referir que, em Portugal de lés-a-lés, se instalou a chaga do roubo e ofícios correlativos. E não se diga que isso é pecha da capital, porque não é verdade. O que sucede é que já tanto rouba, no campo, o hortelão as couves ao vizinho, como, na vila, os "enganos" são moeda corrente e na cidade os assaltos às claras, ou quase, fazem parte do quotidiano.

Pormenorizando: no restaurante, é o criado que se "distrai" nas contas; no supermercado, é a rapariga da caixa que soma a mais; na retrosaria é o elástico que estica; no mercado, é balança que está por aferir; nos escritórios, são os lápis do patrão que se levam para as criancinhas que andam na escola; nos bancos, são os assaltantes que entendem que o dinheiro não está em boas mãos; nas ruas, são os encontrões "proveitosos"; no metropolitano, são os apertos "que compensam" e os avisos públicos que conferem autenticidade às preocupações dos passageiros; nas lojas, como nos carros, nunca se viram tantos alarmes; nas habitações, acrescentam-se cada vez mais grades protectoras e cães que, pelo menos, ladrem.

Em suma, uma bela lista, ainda que curta, para psicólogos e sociólogos.

Simultâneamente, e sem querer tirar grandes ilações do facto, começam a faltar oportunidades para os mais novos; aumenta o desemprego entre os mais velhos, mas, sobretudo, crescem as preocupações no seio da juventude para quem, sem África, se arranjaram modos requintados de morrer - devagar.

E há a droga - efeito ou/ e causa.

São correntes, por outro lado, as palavras suborno, corrupção e temos quem acentue que o Estado é o principal agente do processo. Instalou-se, enfim, a ladroagem organizada.

Todos se queixam e faz lei o ditado consolador dos espíritos que diz que "ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão".

Parece-me que, entrementes, os códigos reguladores e penalizadores também não ajudam.

Acresce que o vocabulário popular aceita cada vez melhor a diferença entre desvio e roubo e, nada, finalmente, é grave. Vive-se na mais tranquila tolerância.

Resta salientar que, ao sugerir o levantamento das nacionais burlas e situações afins, estou a apelar no sentido de se proceder à divulgação organizada dos aspectos negativos que talvez preferíssemos esquecer. Paciência...

Que avancem os sociólogos. A matéria é vasta... Quiçá tese de mestrado...

Desculpem, entretanto, os minutos que, por tão pouco, lhes...lhes tomei."

* in "A TARDE", Janeiro de 1985.

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