"Aqueles que nunca sairam das ruas direitas e monótonas das cidades da Europa, não podem conceber a colorida e luminosa originalidade das cidades do Oriente.
Aí, as ruas são direitas, ladeadas de largas fachadas, caiadas, inexpressivas como rostos idiotas. As figuras são triviais; as fisionomias vulgares, esbatidas, uniformizadas pelo tédio e as dificuldades da vida; os vestuários são escuros, estreitos, económicos. O gás, à noite, perfila a sua linha bocejante; o rodar das carraugens e das carroças abala o chão com uma brutalidade ruidosa.
Tudo é correcto, alinhado, perfilado, medido e policiado.
É decerto excelente para a segurança, para a justiça, para a propriedade, para a ordem: é mesmo indispensável. A algibeira aplaude; a epiderme, protegida, dilata-se de alegria; o espírito de lucro, garantido e patrulhado, desenvolve-se com segurança, e as gavetas podem bocejar sem risco. Tudo está contente no animal policiado - excepto a imaginação.
(...) Porém, para a imaginação do europeu, há ainda uma região livre, abundante e cheia, nas ruas duma cidade do Oriente: o Cairo.
(...) O Cairo é o centro do Egipto e a sua maravilha. A corte do Paxá chama o comércio e as caravanas. A mesquita de Al-Azhar congrega os estudantes. O Vale do Nilo atrai o mundo. E as ruínas que o cercam, convidam os pássaros para ali fazerem ninhos.
Todas as raças, todos os vestuários, todos os costumes, todos os idiomas, todas as religiões, todas as crenças, todas as superstições, ali se encontram, naquelas ruas estreitas. Em qualquer pequeno café do bairro copta ou de um bairro muçulmano, vêem-se, sentados nas esteiras ou encruzados sobre as altas grades de pau de sicômoro, um árabe, um turco, um núbio, um homem da Samaria, um persa, um albanês, um búlgaro, um judeu, um índio, um abissínio, um arménio, um árabe do Maghreb... Um grego faz o café, um beduíno canta no meio da casa, um francês fotografa os grupos, um inglês observa, um americano toma notas...
(...) A população que vem, compra, fuma, reza e volta no seu dormedário e nas suas caravanas (...) Quase um milhão de homens se move naquelas ruas estreitas, apertadas e confusas.
Uma rua do Cairo é uma fenda esguia, tortuosa, e enlameada, apertada entre duas fileiras de casas, que adiantam os seus moucharabiehs como as árvores duma avenida adiantam e encostam as suas mãos de folhagem. Quando a rua é um pouco mais larga, põem-lhe, por causa do sol, toldos de lã, às riscas, ou velhas sedas abandonadas pelos vendedores do bairro.
Quem caminhar numa rua isolada, sob o calor do dia, na proximidade dos bazares e examinar bem as casas, tem a revelação duma imaginação arquitectural, como decerto não voltará a haver na história da civilização (...)."
Foto M.A.P. |
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