"Um dia destes, estava eu, tão calmo e tranquilo quanto é possível nestes tempos transbordantes de zeros à esquerda, quando vejo aparecer no meu televisor o sr. dr. Mário Soares com uma valentíssima nódoa na banda sinistra do seu paletó.
Ao princípio, como é natural, não liguei, mas depois a indiscreta câmara insistiu em dar o senhor doutor em primeiro plano e eu, que não sou de intrigas, comecei a atribuir importância ao incómodo facto.
Pedia então o primeiro-ministro do meu país a compreensão dos portugueses para as medidas de austeridade recentemente decretadas.
Ouvi, ou procurei ouvir, atento e venerando, o que estava a ser dito, mas o precalço atravessava-se nos meus raciocínios de cidadão bem pagante. Ainda que não ignorasse que no melhor pano cai a nódoa e que um primeiro-ministro tem direito à sua percentagem de humanos descuidos destes.
Por outro lado, não consta que os membros do governo possuam sempre à mão fatiotas sobressalentes, como os pneus, para eventuais "furos". Acresce que, em regra, o interesse público das declarações dos políticos é superior a aspectos negativos, como o referido. Só que, se, na matéria, o que parece é, uma nódoa na banda esquerda do casaco de um primeiro-ministro não deixa de poder ser sempre uma perigosa e, eventualmente, significativa nódoa.
Não é a televisão que tem que focar os senhores ministros do lado mais favorável. Apanhou o sr. dr. Mário Soares pelo lado esquerdo - paciência!... Era aí que, naquele momento, estava a mazela... Se o tivessem "visto" pela direita, teria sido diferente: a nódoa, se visível, disfarçava..."
* in "A Tarde" de 20.10.1983
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