sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Manuscrito (fragmentos, anos 70)


Pelas minhas contas, os fragmentos manuscritos do borrão da crónica, que a seguir lanço na NET, foram escritos por mim nos finais da década de 70 do século passado. São, portanto, "antiquíssimos"... Mas como estão relacionados com a liberdade de imprensa, achei-lhes graça e, olhem, aí vão...

"Voltava-se para o "outro lado" a amantíssima esposa quando, cabelos em desalinho, D. Nuno À-Brocha deu um pulo da cama, calçou, atabalhoadamente, as chinelas, viu de relance ao espelho do "psyché" a sua expressão iluminada, vestiu à pressa o "robe de chambre" e simulou sair do quarto, ao mesmo tempo que gritava:

- Vou ser o dono de toda a imprensa... De toda!...

- Mas, Nunhinho, cautela, não tropeces. Olha que calçaste as chinelas ao contrário: tens a esquerda no direito e o direito na esquerda...

-Não me digas nada agora, filha. Descansa que já mudo... Mas a direita está no direito... E agora preciso de me concentrar, desculpa!...

-Sim, querido! - respondeu confiadamente a boa senhora, acrescentando: - Vai, meu bem! É o destino da imprensa livre na Lusa Pátria que está em causa. Ficarei lendo tuas crónicas de viagens enquanto pensas...

Retirou-se, enfim, da alcova, D. Nuno À-Brocha levando consigo exemplares de "O Templo" e de "A Gazeta da Alvorada", sua muito recente e inspirada criação.

Esgueirou-se para a casa de banho, voltou a ver-se ao espelho, lavou em água tépida, rapidamente, a cara, passou a mão pelos despenteados cabelos e entrou, por fim, na sala de estar, ainda quente e perfumada pela presença recente e elegante de algumas destacadas figuras da vida portuguesa do momento, que ali tinham estado em amena cavaqueira até altas horas da noite, a seu insistente convite.

Olhou, então, de soslaio, mas embevecido, um dos muitos diplomas com que havia sido distinguido pela Imprensa Internacional, pôs no "robe de chambre" uma rosa e, entre o eufórico e o meditabundo, sentou-se.

A um canto, deitado em cima de uma velha e já desaparecida revista de sua imortal inspiração, permanecia um dos cães da família que, babando-se, olhava o dono.

D. Nuno respirou fundo, sorriu e acomodou-se no "maple" em que se sentara. Abriu um exemplar de oitenta páginas de "O Templo", fez o mesmo a um número, embora modesto, de "A Gazeta da Alvorada" e começou a ouvir, no silêncio da madrugada, uma voz estranha que...
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-A seguir, serve-te também de "A Gazeta da Alvorada" como arma a teu favor. Isto é um país com muitos analfabetos. Dá-lhes, como estás a fazer - e bem! - sempre "caixas altas" e escândalos. Verás que ganhas fama de sabedor. Em breve dominarás a imprensa da tua pátria. "O "Diurno" é uma questão de tempo; e o "Novo Jornal"... Isso, o "Novo Jornal" - aí está!..."

A voz estranha deixou de se ouvir e D. Nuno estremeceu. "Eureka!" O "Novo Jornal"!... Estava justificada a sua insónia, a sua agitação nocturna depois do serão-bem naquela mesma sala, horas antes.

E gritou uma vez mais:

- Minha filha, achei! Achei!... Sou um homem realizado!...

Acudiu a bondosa senhora, em "negligé" com a "Gazeta da Alvorada" numa mão e o "Templo" na outra.

- Que se passa, meu bem? É tão tarde...

- Tarde? - retorquiu D. Nuno. Mais vale tarde do que nunca...
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...serei o D. Afonso Henriques da imprensa (...) O Verás Medreiros está velho, já não conta...

- Mas querido Nuno, então e aquelas crónicas contra os monopólios?...

- Rasgam-se, minha filha, rasgam-se..."

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