quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Purgatório


Mais osso do que carne, abundante de rugas, alto, vestido de restos, vinte e quatro horas o ano inteiro, conformado com a sorte do mesmo corpo que, pelas partes visíveis, se lhe adivinhava todo revestido de camadas de pó, amassado em suor acumulado, entrou na carruagem do metro a tentar vender não se percebeu o quê "para, à noite, comer uma sopa..." Dizia-se um sem abrigo. Encheu a carruagem, quase esgotada, com o grito, mas ninguém se mexeu... Deu ideia que o apelo, ainda que veemente, fora, no imediato, abafado pela conclusão, eventualmente, injusta: é droga...

Para quem, descuidado, seguia viagem, foi como se, de repente, alguém tivesse entrado no combóio e lançado um qualquer gás paralizante... Estátuas com olhos de gente voltados no mesmo sentido, era o que se observava.

Ao zero geral denunciado, correspondeu o "sem abrigo", da dúvida generalizada, com uma corrida no sentido da carruagem seguinte do conjunto, entretanto, parado. Foi o tempo suficiente para que, no espaço que ficara sem jeito, tivesse entrado nova figura da cidade que pede... Agora
um cego, escasso nas palavras, de que falava uma expressão facial onde os olhos nem sequer se viam, cobertos que estavam por excessos de sobrolhos... Foi coisa de instantes: houve naqueles, mais ou menos, quinze metros de combóio, talvez compaixão, mas, sobretudo, como que um lamento generalizado de bondades em risco e um abrir quase colectivo de bolsas para a caixa de
esmolas do cego, inequívoco Purgatório de almas em sobressalto...

E não aconteceu mais nada.

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