ENTREVISTA com Celina Veiga de Oliveira (cont.)
Mais figuras?...
No campo literário, e está vivo, o Dr. Henrique Senna Fernandes,* que é uma pessoa que tem posto no papel cenários de um Macau que já não existe e que ele viveu quando era pequeno, que é o Macau antigo.
Ainda dentro do século XIX, na sequência do assassinato de Ferreira do Amaral, há uma tentativa de assalto à cidade por parte de forças chinesas, vindas do outro lado da fronteira, da Porta do Cerco, e há um macaense, de algum modo, símbolo da heroicidade romântica desses tempos, que é um senhor chamado Vicente Nicolau de Mesquita, que resolveu ir ter com a Junta Governativa, que se formou logo após a morte do governador, a dizer "deixem-me ir com alguns homens, que vou evitar o assalto à cidade."
E aí foi ele com um canhão, que, ainda por cima, tinha sido oferecido ao Amaral por um francês... Ninguém acreditava que fizesse alguma coisa, pois tinha apenas dezasseis pessoas para o ajudarem. O certo é que se instalou nas Portas do Cerco, disparou o canhão (saiu a bala, mas o canhão fica todo estragado...),e a bala, com tanta sorte, cai dentro do forte onde estavam aquarteladas as forças chinesas, que entraram completamente em pânico e, depois de grandes peripécias, consegue, de algum modo, libertar Macau e arredar para bem longe o perigo chinês de invasão do território.
Para mim é muito mais fácil dizer-lhe nomes da história, mas, de qualquer forma, ainda no século XIX, gostaria de lhe falar também de uma pessoa que, não tendo tido a influência de um Camilo Pessanha, deixou escritos sobre Macau. Também era português, também era intelectual, que veio para cá no século XIX: Venceslau de Morais, que teve uma grande importância, embora mais acentuada no Japão, como se sabe.
Ele vai daqui para aquele país e, durante três décadas, lá viveu e escreveu... Deixou-nos páginas admiráveis, do final do século passado e princípios deste.
Na parte de arquitectura ainda, felizmente, temos em Macau alguns bons exemplos da arquitectura do século XIX. Dizem os especialistas que é uma arquitectura híbrida, uma mistura da influência da terra com a influência ocidental, de que é exemplo o Palácio do Governo, que é muito bonito. O arquitecto chamava-se Tomás de Aquino, fez outra obras, mas, de certa forma, são as que foram preservadas, que fazem parte do património de Macau e que singularizam o aspecto físico da cidade.
Depois, na parte da história, se nós começarmos a partir do século XVI, em duas décadas, dou-lhe logo inúmeras referências... Por exemplo, de jesuítas que foram a primeira força missionária a vir para Macau.
No aspecto da assistência, temos o D. Melchior Carneiro, que foi o homem que fundou a Santa Casa da Misericórdia, o hospital de S. Lázaro, para tratamento de leprosos, o hospital de S. Rafael...
Há também uma figura no Senado, considerada o primeiro governador de Macau, que é D. Francisco de Mascarenhas, nomeado pelo vice-rei de Goa para vir para aqui tratar da defesa da cidade, que estava sistematicamente a ser atacada pelos holandeses. Por isso, D. Francisco de Mascarenhas é considerado o "primeiro governador efectivo e permanente de Macau."
Gostaria, entretanto, de lhe dar nomes de senhoras, mas a mulher que, em Macau, até pelo próprio estatuto, nunca teve uma posição muito relevante, a não ser nas pessoas ligadas ao ensino ou mulheres que, eventualmente, passassem por cá, como é o caso da Maria Ana Accioli Tamagnini, que foi casada com um grande governador de Macau, Tamagnini Barbosa, e que era poetisa e nos deixou poemas muito bonitos acerca desta terra. Tinha uma grande sensibilidade.
De facto, pessoas que tivessem uma presença muito marcada, só a partir deste século é que se notam...
Gostaria agora que me falasse de dez iniciativas com direito a compêndio de história...
Para já, deixe-me falar-lhe do governador Melância e do governador Rocha Vieira, actual, que, de certa forma, foram os grandes executantes, um na parte mais de estratégia, outro na parte mais de execução de um dos pólos que eu acho que vai contribuir para a aproximação da identidade e da autonomia de Macau, que o aeroporto.
Acho fundamental. O aeroporto de Macau é uma das coisas que vai figurar, quanto mais não seja, numa nota de rodapé de um compêndio de história...
Outro facto muito importante, e que vai fazer 20 anos em 1996, é a promulgação do Estatuto Orgânico de Macau. Como se sabe, em 1974, houve o 25 de Abril, e um dos seus princípios sublinhados foi o da descolonização. Macau detinha uma situação especial, as nossas autoridades já tinham entendido isso, de modo que se iniciaram conversações, mais ou menos secretas, para resolver a questão...
Isso é tratado entre dois Estados, Portugal e China, mas, de qualquer forma, há uma ideia que passa a existir em relação a Macau: é a assunção de que este espaço é território chinês, embora administrado por portugueses. E isso figura no Estatuto Orgânico de Macau, que vai ser como que uma espécie de norma em vigor para o território e que depois é também acolhido na primeira Constituição democrática de 1976. Portanto, Macau, sim, administrado por portugueses, mas território chinês. E, a partir daí, nada é igual. Essa promulgação e depois as negociações que, em 1987, resultaram na Declaração Conjunta e, em 1993, a Lei Básica. São momentos dignos de registo.
Porquê?
O Estatuto prevê uma alteração substâncial, que é a assunção, por parte dos portugueses, de que Macau é território chinês, embora administrado por portugueses. Depois porque se constituem dois grupos de trabalho, um chinês e outro português, para, conjuntamente, discutirem e debaterem a solução de Macau. À semelhança do que se passou em Hong Kong, também se reunem representantes dos dois Estados e se faz uma Declaração Conjunta, que é aprovada em 1987 e ratificada em 1988. Depois de, em 1987, termos entrado naquilo que se designou por Período de Transição.
Depois é elaborada a Lei Básica, que há-de ser o texto fundamental regulador de toda a vida da região administrativa especial de Macau.
Julgo que isto vai figurar na história de Macau.
Outro aspecto que penso que também é importante é a posição de Macau na Segunda Guerra Mundial. Porquê? Todo o Pacífico estava controlado pelas forças japonesas, Hong Kong tinha sido ocupado em 1941, e a China, desde 1937 que estava ocupada pelos japoneses (um mar de guerra e destruição...). Aqui à volta de Macau era o único ponto onde não havia conflito. Servia, necessariamente, de base de informação e contra-informação para as forças, quer dos aliados, quer dos japoneses, era local de refúgio - e também de lazer. Os japoneses estavam aqui e houve uma grande exaltação (até da vida nocturna) com os japoneses naquela época.
Macau, na Segunda Guerra Mundial é, por isso, um dos pontos importantes a registar na história do território.
Outro é o problema da Questão de Macau. De facto, é necessária uma leitura equilibrada, distanciada, objectiva, acerca do que foi o estatuto de Macau através dos tempos. Porque a visão portuguesa difere da chinesa e tenho a impressão de que, só a partir do estudo comparativo das respectivas fontes, é que poderá sair, de facto, uma interpretação correcta do que foi verdadeiramente Macau ao longo de séculos. Isto é, o que é que Macau é como território chinês, território português...Quem mandou, quem não mandou...
A Questão de Macau, o Estatuto Político de Macau, também se pensa que é tema para a história que culminou no Tratado de 1987.
Depois, para trás, temos alguns dados interessantes, para além daquele de que já falei, do Ferreira do Amaral, que é a capacidade (pode ser nota de rodapé...) que Macau tinha, tão longe de Goa, tão longe do reino, de conseguir suster, por exemplo, o avanço dos holandeses que, no século XVII, sistematicamente, andaram aqui a aborrecer-nos, sem nunca o conseguiram nada...Lembra-se a ofensiva de 24 de Junho de 1622, que culminou numa grande vitória dos moradores de Macau e que, ainda hoje, é o dia da cidade, Dia de S. João Baptista.
Outro aspecto determinante talvez seja o facto de Macau ser diferente. Repare, Macau tem fortalezas portuguesas, tem um Farol da Guia, tem muitas marcas civilizacionais do Ocidente que não há quem tenha aqui à volta...
Isso é que eu acho que vai figurar no tal compêndio. E é capaz de ser o aspecto mais importante.
* Será a entrevista que se irá seguir a esta"lição de história", que continuará mais adiante...
Mais figuras?...
No campo literário, e está vivo, o Dr. Henrique Senna Fernandes,* que é uma pessoa que tem posto no papel cenários de um Macau que já não existe e que ele viveu quando era pequeno, que é o Macau antigo.
Ainda dentro do século XIX, na sequência do assassinato de Ferreira do Amaral, há uma tentativa de assalto à cidade por parte de forças chinesas, vindas do outro lado da fronteira, da Porta do Cerco, e há um macaense, de algum modo, símbolo da heroicidade romântica desses tempos, que é um senhor chamado Vicente Nicolau de Mesquita, que resolveu ir ter com a Junta Governativa, que se formou logo após a morte do governador, a dizer "deixem-me ir com alguns homens, que vou evitar o assalto à cidade."
E aí foi ele com um canhão, que, ainda por cima, tinha sido oferecido ao Amaral por um francês... Ninguém acreditava que fizesse alguma coisa, pois tinha apenas dezasseis pessoas para o ajudarem. O certo é que se instalou nas Portas do Cerco, disparou o canhão (saiu a bala, mas o canhão fica todo estragado...),e a bala, com tanta sorte, cai dentro do forte onde estavam aquarteladas as forças chinesas, que entraram completamente em pânico e, depois de grandes peripécias, consegue, de algum modo, libertar Macau e arredar para bem longe o perigo chinês de invasão do território.
Para mim é muito mais fácil dizer-lhe nomes da história, mas, de qualquer forma, ainda no século XIX, gostaria de lhe falar também de uma pessoa que, não tendo tido a influência de um Camilo Pessanha, deixou escritos sobre Macau. Também era português, também era intelectual, que veio para cá no século XIX: Venceslau de Morais, que teve uma grande importância, embora mais acentuada no Japão, como se sabe.
Ele vai daqui para aquele país e, durante três décadas, lá viveu e escreveu... Deixou-nos páginas admiráveis, do final do século passado e princípios deste.
Na parte de arquitectura ainda, felizmente, temos em Macau alguns bons exemplos da arquitectura do século XIX. Dizem os especialistas que é uma arquitectura híbrida, uma mistura da influência da terra com a influência ocidental, de que é exemplo o Palácio do Governo, que é muito bonito. O arquitecto chamava-se Tomás de Aquino, fez outra obras, mas, de certa forma, são as que foram preservadas, que fazem parte do património de Macau e que singularizam o aspecto físico da cidade.
Depois, na parte da história, se nós começarmos a partir do século XVI, em duas décadas, dou-lhe logo inúmeras referências... Por exemplo, de jesuítas que foram a primeira força missionária a vir para Macau.
No aspecto da assistência, temos o D. Melchior Carneiro, que foi o homem que fundou a Santa Casa da Misericórdia, o hospital de S. Lázaro, para tratamento de leprosos, o hospital de S. Rafael...
Há também uma figura no Senado, considerada o primeiro governador de Macau, que é D. Francisco de Mascarenhas, nomeado pelo vice-rei de Goa para vir para aqui tratar da defesa da cidade, que estava sistematicamente a ser atacada pelos holandeses. Por isso, D. Francisco de Mascarenhas é considerado o "primeiro governador efectivo e permanente de Macau."
Gostaria, entretanto, de lhe dar nomes de senhoras, mas a mulher que, em Macau, até pelo próprio estatuto, nunca teve uma posição muito relevante, a não ser nas pessoas ligadas ao ensino ou mulheres que, eventualmente, passassem por cá, como é o caso da Maria Ana Accioli Tamagnini, que foi casada com um grande governador de Macau, Tamagnini Barbosa, e que era poetisa e nos deixou poemas muito bonitos acerca desta terra. Tinha uma grande sensibilidade.
De facto, pessoas que tivessem uma presença muito marcada, só a partir deste século é que se notam...
Gostaria agora que me falasse de dez iniciativas com direito a compêndio de história...
Para já, deixe-me falar-lhe do governador Melância e do governador Rocha Vieira, actual, que, de certa forma, foram os grandes executantes, um na parte mais de estratégia, outro na parte mais de execução de um dos pólos que eu acho que vai contribuir para a aproximação da identidade e da autonomia de Macau, que o aeroporto.
Acho fundamental. O aeroporto de Macau é uma das coisas que vai figurar, quanto mais não seja, numa nota de rodapé de um compêndio de história...
Outro facto muito importante, e que vai fazer 20 anos em 1996, é a promulgação do Estatuto Orgânico de Macau. Como se sabe, em 1974, houve o 25 de Abril, e um dos seus princípios sublinhados foi o da descolonização. Macau detinha uma situação especial, as nossas autoridades já tinham entendido isso, de modo que se iniciaram conversações, mais ou menos secretas, para resolver a questão...
Isso é tratado entre dois Estados, Portugal e China, mas, de qualquer forma, há uma ideia que passa a existir em relação a Macau: é a assunção de que este espaço é território chinês, embora administrado por portugueses. E isso figura no Estatuto Orgânico de Macau, que vai ser como que uma espécie de norma em vigor para o território e que depois é também acolhido na primeira Constituição democrática de 1976. Portanto, Macau, sim, administrado por portugueses, mas território chinês. E, a partir daí, nada é igual. Essa promulgação e depois as negociações que, em 1987, resultaram na Declaração Conjunta e, em 1993, a Lei Básica. São momentos dignos de registo.
Porquê?
O Estatuto prevê uma alteração substâncial, que é a assunção, por parte dos portugueses, de que Macau é território chinês, embora administrado por portugueses. Depois porque se constituem dois grupos de trabalho, um chinês e outro português, para, conjuntamente, discutirem e debaterem a solução de Macau. À semelhança do que se passou em Hong Kong, também se reunem representantes dos dois Estados e se faz uma Declaração Conjunta, que é aprovada em 1987 e ratificada em 1988. Depois de, em 1987, termos entrado naquilo que se designou por Período de Transição.
Depois é elaborada a Lei Básica, que há-de ser o texto fundamental regulador de toda a vida da região administrativa especial de Macau.
Julgo que isto vai figurar na história de Macau.
Outro aspecto que penso que também é importante é a posição de Macau na Segunda Guerra Mundial. Porquê? Todo o Pacífico estava controlado pelas forças japonesas, Hong Kong tinha sido ocupado em 1941, e a China, desde 1937 que estava ocupada pelos japoneses (um mar de guerra e destruição...). Aqui à volta de Macau era o único ponto onde não havia conflito. Servia, necessariamente, de base de informação e contra-informação para as forças, quer dos aliados, quer dos japoneses, era local de refúgio - e também de lazer. Os japoneses estavam aqui e houve uma grande exaltação (até da vida nocturna) com os japoneses naquela época.
Macau, na Segunda Guerra Mundial é, por isso, um dos pontos importantes a registar na história do território.
Outro é o problema da Questão de Macau. De facto, é necessária uma leitura equilibrada, distanciada, objectiva, acerca do que foi o estatuto de Macau através dos tempos. Porque a visão portuguesa difere da chinesa e tenho a impressão de que, só a partir do estudo comparativo das respectivas fontes, é que poderá sair, de facto, uma interpretação correcta do que foi verdadeiramente Macau ao longo de séculos. Isto é, o que é que Macau é como território chinês, território português...Quem mandou, quem não mandou...
A Questão de Macau, o Estatuto Político de Macau, também se pensa que é tema para a história que culminou no Tratado de 1987.
Depois, para trás, temos alguns dados interessantes, para além daquele de que já falei, do Ferreira do Amaral, que é a capacidade (pode ser nota de rodapé...) que Macau tinha, tão longe de Goa, tão longe do reino, de conseguir suster, por exemplo, o avanço dos holandeses que, no século XVII, sistematicamente, andaram aqui a aborrecer-nos, sem nunca o conseguiram nada...Lembra-se a ofensiva de 24 de Junho de 1622, que culminou numa grande vitória dos moradores de Macau e que, ainda hoje, é o dia da cidade, Dia de S. João Baptista.
Outro aspecto determinante talvez seja o facto de Macau ser diferente. Repare, Macau tem fortalezas portuguesas, tem um Farol da Guia, tem muitas marcas civilizacionais do Ocidente que não há quem tenha aqui à volta...
Isso é que eu acho que vai figurar no tal compêndio. E é capaz de ser o aspecto mais importante.
* Será a entrevista que se irá seguir a esta"lição de história", que continuará mais adiante...
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